DAS TREVAS DO PASSADO

DAS TREVAS DO PASSADO

Miguel Carqueija

 

            Bentinho sempre quis ter a última palavra e acredito que ele julgou tê-la quando escreveu o seu infamante memorial, no qual me condenou implacavelmente ao opróbrio das gerações futuras, quando o texto fosse conhecido. Condenou-me sem direito a defesa, numa sociedade em que a mulher ainda sofre sérias restrições, onde não existe a igualdade entre os sexos. Difamou-me e a Escobar; este porém, já tendo partido para o Além, com certeza não se importou muito.

            Parti para a Europa humilhada e ofendida, buscando em países mais adiantados remédio e consolo para a injúria sofrida. Soube mais tarde que, não contente em matar-me em seu coração, ele ainda fez constar que eu morrera fisicamente, e é isso que consta em seu livro doentio, fruto de uma mente doentia, corroída pelo germe do ciúme.

            Revendo o passado distante pasmo em lembrar o quanto ele e eu nos amávamos! Era um amor lindo de adolescentes e que prosseguiu pelos anos afora: confesso que não captei em que ponto exato as coisas começaram a mudar, pois antes de me acusar frontalmente Bentinho já se roía em ciúmes secretos. E eu, iludida pelas juras de amor eterno, não imaginava que entrara uma serpente na alma do meu amado.

            Bento com certeza não previa que eu, reles e desprezível como me tornara a seus olhos, pudesse sobrevivê-lo. Entretanto, embora regulássemos a mesma idade, a verdade é que, sofrendo de obsessão mórbida, ele já não era saudável. Durante anos, por respeito ao que nós fomos, preferi silenciar a verdade, apesar dele ter posto nosso filho contra mim e, no final da vida, se fechasse na deplorável misantropia que lhe grangeou o ridículo apelido com que nomeou sua autobiografia.

            O que Bentinho nunca ficou sabendo é que, ao partir para nunca mais vê-lo, eu levava a sua semente em meu seio, e que a filha que eu gerei ficou comigo e tornou-se o meu consolo e esteio. E a sua presença me deu forças para continuar viva e decidir-me, enfim, a narrar a minha experiência pessoal, na esperança de que a mesma sirva de alerta a tantas mulheres em situação semelhante, mal-amadas por homens que não as merecem.

 

 

                                                   CAPITU

NOTA: esta história é baseada no romance "Dom Casmurro" de Machado de Assis . Faz parte do planejado romance "A vingança de Capitu".

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Comentários

  • Alô, Ilario, não exageremos, é claro que não fiquei ofendido. Apenas argumentei em torno do enredo de Machado de Assis, pois é claro para mim que Bento Santiago é uma caso de psiquiatria. Sou um escritor sem ego inflado: mesmo se entrarem na questão da qualidade literária e disserem que meu texto é ruim, eu não me incomodo pois parto do princípio de que nenhum autor pode exigir que o público e os críticos só lhe façam elogios. A polêmica em torno do caso Bento-Capitu foi alvo inclusive de debate na antiga TV Educativa, quando o filme respectivo foi exibido e debatido nos Cadernos de Cinema Brasileiro que a Vera Barroso apresentava. Seus comentários são bem-vindos. De qualquer forma espero terminar o livro no qual pretendo reabilitar Capitu, mas há muito trabalho pela frente. Um abraço.

  • Prezado Ilario, não esqueça que naquele tempo não existia o exame de DNA. A alegada semelhança jamais serviria de prova num tribunal tanto mais que se tratava da semelhança de uma criança com um adulto. Para um doente mental como Bentinho, não precisava muita coisa. E se ele até pensou em matar o menino, que valor tem o seu testemunho? Não é uma lebre que eu esteja levantando, pois há gerações se discute se Capitu é culpada ou inocente. Toda a história é contada sob a ótica de Bento, portanto era importante saber a versão da própria Capitu. Embora fascinante, o enredo quase policial de Machado faz prevalecer a versão machista. Um abraço.

    • Prezado Miguel, você esta levando ás coisas para o lado errado, o que digo são conjecturas, mas o Bento conhecia o amigo desde a infância sabia como ele era quando tinha tenra idade. Mas, esqueçamos tudo isto, não vamos polemizar algo tão irrelevante. E quanto ao machismo ele ainda é predominante em nossa sociedade. Peço desculpas se meus comentários o tenha ofendido. Abraços, paz e Luz!!! PT. Saudações.

  • 3665669?profile=original

  • Angélica, Elaine, Ilário, muito grato pelos comentários. Ilário, este texto é um conto, aliás a introdução de um romance, não um poema. Mas quem disse que Capitu traiu Bentinho? Ele era um paranoico. Obviamente ela era inocente. Acho que o texto acima deixa isso bem claro. Abraços.

    • Certo, então, estamos diante de um "sofisma", pois, a semelhança do jovem filho com o amigo que morreu afogado. Também era paranoia? Obrigado, pela resposta caro poeta. Abraços, paz e Luz!!!   

      PS: Dom Casmurro = Introspectivo, teimoso...

  • Parabéns, poeta, poema lindo, primoroso, o poeta citado é fantástico, o Livro também. Agora eu pergunto? como será que ela o traiu? Segundo o Livro o filho era de seu melhor amigo e, ás pistas são inexistentes, obra magnífica... Se tu souberes a resposta, por favor, responda-me até hoje não encontrei meios... Não citarei nomes de personagens. O Ciúme é algo terrível... Abraços, paz e Luz!!!

  • Muito bom mesmo!

    Já estava com saudades de você, meu amigo!

    Abraços carinhosos!

    :)

  • Sensacional!!! Eu amei!!! Obrigada por compartilhar!!!
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