Na revista Ponto & Vírgula- Maio-Junho
Ano 4. edição 27
Uma esbelta jovem de longos e escuros cabelos, que lhe emolduravam o rosto de pele clara e suave. Os olhos ligeiramente maquilhados; lápis e rímel preto. O casaco de malha azul, comprido e sem mangas deixava ver a curta camisa preta, a tocar o cós das calças de ganga azul, revelando a elegante cintura. Um belo rosto aliado a um estilo simples de vestir. No entanto, os movimentos caprichosos do corpo, denunciavam a convicta expressão: ´´ tudo posso, em tudo mando``, quebrando um pouco a beleza do seu próprio retrato. Virgínia entrou no café, acompanhada pelo seu pai. Alberto, de cinquenta e nove anos, bem conservados e com ar de quem usufruía de uma vida estável, pediu um café para ele e um café e um gelado para a filha. Esperou no balcão pelos respectivos pedidos e ele próprio serviu a filha, já sentada numa mesa. Quase de imediato a jovem levantou-se:
- Desculpe, pode colocar mais água no café?- perguntou ela à empregada.
A empregada sorriu e assim fez.
Uns cinco minutos depois dirigiu-se de novo ao balcão:
- Desculpe, não quero ser desagradável, mas pode deitar um pouco de café no meu gelado? Está gelado demais.
A empregada sorriu e assim fez.
- Vamos para uma mesa lá fora- disse a rapariga para o pai, sem se sentar. Voltou-se de novo para a empregada e como quem dá uma ordem e não como quem pede, disse:
- Desculpe, mas precisamos de um chapéu para uma das mesas da esplanada.
- Mas hoje está um pouco de vento. Penso que, lá fora, não está muito agradável.
- Não vê o sol que faz? Que desperdício ficar aqui dentro. Quero apanhar um pouco de sol.
Na esplanada, sentados frente a frente, o pai bebia o café e a filha falava. Apenas falava ela. Nos olhos do orgulhoso pai, viviam as histórias contadas pelo amor paternal. O epílogo de todas essas histórias era sempre o mesmo: a sua princesinha era perfeita. Depois de uns curtos dez minutos, eles entraram de novo no café.
- Desculpe, não quero ser desagradável, mas está um vento insuportável lá fora. Melhor será ir buscar o chapéu. Ah, mas antes que vá, poderia dar-me mais uma bola de gelado? Entretanto, este ficou demasiado liquido.
-Desculpe, terá que pagar mais uma colher de gelado- respondeu a empregada, engolindo o estado de cansaço, provocado pela situação.
- O quê? Que atrevimento! Então dá-me um gelado quase congelado, mas que afinal não deveria estar tão consistente assim, porque rapidamente derreteu, e atreve-se a cobrar-me mais uma colher?
A empregada, preplexa, olhou para o patrão à procura de auxílio. Poderia dar-lhe mais uma colher de gelado ou não? Com um movimento de consentimento, o patrão autorizou que a empregada servisse a cliente, exatamente como ela exigia. ´´O cliente tem sempre razão, mesmo aquele que não quer ser desagradável``, foi a frase silenciosa, trocada através do olhar, entre patrão e empregada. Esta, com um sorriso que parecia o mais natural do mundo, assumindo a culpa, desculpou-se e educadamente garantiu:
- Esta situação desagradável não voltará a acontecer.
- Não faz mal. Eu sou muito compreensiva. Está desculpada- respondeu Virgínia, sem reparar na ironia contida no pedido de desculpas.
Fernanda R. Mesquita
( Casos reais em tempos modernos )
Comentários
Oh muito obrigado Marcos, por tão completo comentário... Realmente apreciei.
"Uma esbelta jovem..." Assim começas este belo texto e depois, "Um belo rosto...", continuas ainda no princípio nos fazendo crer na beleza que a jovem estampa. Mas, é no correr da narrativa que nos deparamos com o comportamento tão mesquinho e arrogante que sem dúvida contrasta e mancha tal beleza. No fim, nos resta a certeza de que a verdadeira beleza não é aquela que o sol expõe mas, sem qualquer dúvida, é a que vem de dentro, a que em palavras e gestos, ao mundo se mostra...
Meus parabéns querida Fernanda, sem dúvida um belo texto para se refletir...
Beijos, Marcos.
Muito obrigado pelos comentários carinhosos. Muito, muito carinho para voces também.
Muito bom teu texto e bastante reflexivo para a atualidade. Gentileza gera gentileza e ter paciência é a virtude que pode contornar conflito.
Meus aplausos.
(Desculpe, não quero ser desagradável) Você e seus textos nunca serão desagradáveis! Parabéns por esse grande momento de inspiração.