INVENTÁRIO
Pesam sobre teus ombros vergados,
Mais que a noite, teus pensamentos de treva.
Vais pela rua padecendo os cães plebeus
Abandonados de toda sorte, de toda gente.
Pensas na inerte humanidade comum.
Pensas nas tuas (in)ações cotidianas.
Débil, como realmente és, intimida-se.
Nenhum gesto teu supõe-te capaz.
Não formarás uma realidade menos abjeta.
O mundo, tal como vês, imutável.
Sobre altas cordilheiras de áurea potência,
Em cúpulas invulneráveis como fortes aéreos,
O destino das nações rasteiras é escrito
Com canetas de pólvora, em pautas embarricadas
Da astúcia de déspotas, cultores de carnificinas.
Descrente, proclamas numa íntima audiência:
“Eis o que foi feito das verdes pastagens
Que preparastes para o nosso descanso!”
Segues ouvindo o monólogo dos teus olhos
Abertos ao horizonte do chão a teus pés.
Nenhuma alegria furtou tuas dores,
Já sabes que teu riso não seca lágrima,
Nem te transpõe além dos tributos:
Quaisquer que sejam, serão cobrados.
Tua palavra não preencheu tua carência,
És tão indigente como qualquer um
Com uma arqueologia de perguntas,
Todas naturalmente irrespondíveis.
Apesar da reiterada liturgia do prazer
Na voraz comunhão das carnes,
Depois do alpendre do gentil corpo,
Sabes teimosamente fechadas as portas
À nave sutil da alma inexpugnável.
Teu gozo não sacia a fome de amor.
Isso será teu grande mal, teu maior bem.
Avanças pela rua, pela noite, pelo silêncio,
Cumprindo itinerário para nenhuma terra santa.
Professas uma religião sem esperar milagres.
Estás tomado de paixão nessa tua via-crúcis.
Buscas em teus ritos silenciosos de ermitão
A chave que só tu mesmo poderás forjar
Com teus desenganos,
Com teus cães padecentes,
Com tuas noites opressivas,
Que te fazem humano ser.
(E. Rofatto)
Comentários
Grato, Nieves! Sua visita e seu comentário são mais motivos para a minha gratidão!
Inventário de vida, do mundo, do ser, do amor,
dos silêncios na noite,dos desencantos e encantos
de um ser humano.
Genial caro poeta
Abraço fraterno
FC
Grato, Frederico!
Seus escritos poderiam tornar-se seriados, novelas, minisséries ou longas-metragens de televisão. Poucas são as palavras para descrever a admiração com que fico ao decodificar seus escritos.
Grato, Sam! Sua generosidade ao comentar meus escritos dá conta do quanto se deve preservar a sua amizade pela grandeza da pessoa que você é. "A recíproca é verdadeira" é uma frase-feita, mas, nesse caso, revestida de sinceridade: também sou admirador dos seus poemas lapidados com a sua marca tão pessoal!
Uauuu! Isto é que é um inventário. E é assim que é a vida, ou melhor, é assim que a vida é forjada, ela vai sendo construida no cotidiano de cada um, mesclada de todos os sentimentos e sensações vividos em segundos, minutos, horas, dias etc, em cada fração de tempo, seja ele qual for. Poema de versos líricos, cheio de reflexões existenciais.
Meus aplausos pela obra!
Grato, Edith! Sua dupla atenção lisonjeia-me grandemente: além da gentileza do comentário que põe a descoberto todo o sentido do poema (denunciador da sua leitura atenciosa - mais um motivo de gratidão!), ainda recebo o mimo da imagem tão belamente construída! Por essas atenções, sua amizade é preciosa para mim!