K7

O lugar cheirava a coisas velhas.
Livros antigos, velhos discos em vinil antigas fitas cassetes, e revistas de todos os tipos em profusão. Um pouco de odor de mofo no ar? Sim provavelmente também.
Antonio já estivera ali dezenas de vezes talvez centenas, era caminho pra escola passava pela frente daquele sebo todos os dias, costumava entrar, fuçar, catar, cavar coisas ali... tudo sob o olhar vigilante e estranhamente frio do proprietário. Um ancião que parecia mais velho do que qualquer coisa que tivesse na loja.
 Antonio olhava as revistas, lia as lombadas dos livros, espiava os DVDs e os CDs, mas raramente comprava algo.
Comprar como? A grana da mesada não podia andar mais curta naqueles tempos.
Se lhe fosse perguntado por que então ia ali quase todo dia e ele fosse sincero ao responder (e dificilmente seria) ele diria que era a atmosfera da loja... e o cheiro...aquele cheiro de passado palpável no ar que tanto desagradava alguns mas para ele era como perfume...um caro e gostoso perfume.
Antonio não queria ser jogador de futebol, não queria ser medico nem advogado, nem jornalista nem porra nenhuma! Não! Antonio queria e ser dono de um sebo, um sebo como aquele. Um sebo maior que aquele.
E era sobre isto que devaneava todos os dias explorando as mal cuidadas estantes da loja.
Mas naquele dia foi diferente! O dia todo havia sido diferente.
Pela manhã Antonio recebeu sua mesada (adiantada e sem a costumeira choradeira do pai só isto já valia o dia) no café da manha havia pão caseiro maionese presunto e queijo, seu sanduiche predileto pra começar o dia? Seria possível? Sim foi possível!
No caminho da escola encontrou a Joana, achava a Joana a maior gatinha da escola com seus olhos verdes quase cintilantes e sua fala gostosa! E ela não só fez questão de ir com ele para a escola como enganchou seu braço no dele toda sorridente. (é o céu Antonio pensou no fundinho de sua mente )na escola as aulas foram boas e passaram rápido.
Ele ficou na media em todos os trabalhos escolares que apresentou o que por si só já lhe parecia um feito que justificava não só a mesada que recebera como a reenvidicaçao de um aumento da mesma.
E quando voltou pra casa após as aulas a bem aventurança não havia o abandonado ainda. Sentia que estava vivendo o melhor dia de sua curta vida, passou na loja pela primeira vez em bastante tempo realmente com dinheiro pra gastar (e realmente disposto a fazê-lo) entrou na loja e como sempre o velho estava La atrás de seu balcão cofiando a longa barba com a mão esquerda olhar perscrutador e vigilante. Mas não havia algo diferente nele hoje?
Sim havia, Antonio podia jurar que havia sim, os olhos do velho não pareciam tão frios como de costume, estavam mais... acesos...mais ...vivos.
Quando Antonio passou por ele rumo a estante das revistas o velho anunciou em voz quase gutural.
- Chegou um monte de coisas novas na seção de musica guri, vê La se não tem algo que tu gosta!
Tão atônito com inédita e totalmente inesperada atitude do velho ele ficou (anos vindo ali e o velho nunca lhe dera sequer um bom dia) que Antonio só assentiu timidamente com a cabeça e foi ate a seção indicada.
Atrás dele apoiado em seu gasto balcão o velho sorrio o mais predador dos sorrisos.
O garoto não saberia dizer quanto tempo ficou entretido vendo as novidadas, o velho não exagerara havia muitas mesmo, CDs de jazz, velhas bandas de rock, Ozzy Osbourne, Nirvana, muitos discos antigos também, e umas duas pilhas novas de cassetes que pareciam mais do que nunca antiquadas, foi nesta pilha que ele a encontrou.
Estava no topo a primeira.
Uma fita cassete cuja capa não tinha qualquer inscrição, nenhuma logo, nada, a capa era apenas azul, um azul profundo e gélido. Ele manuseou a fita por longos minutos tentando imaginar do que se tratava sem conseguir. A curiosidade crescia dentro dele quase ardia.
Em circunstâncias normais ele não ousaria fazer qualquer pergunta ao velho. Mas este não era um dia normal não é verdade? Era o melhor dia da sua vida e o velho ate falara com ele.
Pegou a dita fita e foi ate o balcão, em voz incomodamente vacilante perguntou quase a queima roupa pra não perder a coragem.
-Esta fita aqui do que é? Não tem nome nem nada!
O velho olhou pra ele e pra fita como se os estivesse vendo pela primeira vez na vida, seus olhos realmente pareciam mais vivos do que nunca, mas a voz era a voz que se espera que tenha um morto se voltasse a falar quando respondeu.
-Não sei guri veio junto com o lote, deve ter esta merda de rock ai ne? Quase tudo que comprei com ela era rock.
-Não da pra saber o que tem nela... pode ate não ter nada . – arriscou Antonio
- Lógico que tem algo ai guri- respondeu o velho em tom levemente ofendido- só não sei o que é por que não escuto estas merdas.
- Ta certo- concordou Antonio- eu to bem curioso, mas to com medo de levar e se ruim.
-Façamos o seguinte guri... leva te vendo por um real, e minha única oferta , se for boa melhor pra ti que saiu no lucro se for uma droga um real não vai te deixar mais pobre vai?
Antonio encarou o velho quase sem acreditar, num mesmo dia trocara com ele mais palavras do que faziam no mês todo, realmente aquele era seu dia de sorte.
- Feito – respondeu ele já tirando a moeda de um real do bolso.
Enquanto saia da loja só uma coisa, uma coisinha mínima o incomodou um pouco.
O velho pegou a moeda e pôs na registradora com um sorriso estranho demais no rosto.
Não saberia dizer o que era, mas algo naquele sorriso o perturbava, parecia o sorriso que dava o gato que acabara de comer o canário mais gordo de sua vida.
Mas quando chegou a casa e foi correndo pro quarto atrás de seu antigo tocador de cassetes ele já nem pensava mais nisto, achou sua preciosa antiguidade atrás de uma pilha de revistas Mads, ligou a tomada e ansioso pós a fita a rodar.
A principio não ouve som algum, só um silencio estranho que parecia não só vir da fita, mas tomar de assalto o quarto todo, Antonio já estava começando a chingar pensando merda um real jogado fora quando o silencio foi substituído por um silvo, baixo, mas audível e parecia interminável.
Antonio sentiu-se tonto, tudo a sua volta ficou difuso, e sua visão ficou tomada por um profundo frio e impenetrável azul, este foi seu ultimo pensamento racional.
No dia seguinte os jornais e telejornais de pais todo contavam a estória do adolescente assassino que estraçalhara a família inteira.
Matara o pai ainda na garagem o surpreendera quando saia despreocupadamente do carro, afundou seu crânio com uma marreta pesada, o golpe fora tão violento que a marreta permanecera presa ao crânio.
A mãe ele matou na cozinha, enfiara nela absolutamente todos os utensílios pontiagudos que encontrara nas gavetas daquela cozinha, facas, garfos, tesouras, ate um abridor de latas em forma de golfinho.
A irmã mais velha ele matou no quarto dela mesmo. A enforcou com o fio do secador de cabelo que depois ligou na tomada e enfiou em sua boca.
O irmão menor ele afogou na privada.
A policia o encontrou catatônico sentado na sala de estar.
Não reagia a estímulos de espécie alguma.
Os motivos das mortes e como pode executa-las jamais seriam explicados alardeavam os repórteres excitados com cheiro de sangue e pontos no ibope.
O delegado da cidade Marcelo era um homem jovem, pinta de garotão mais parecia um frequentador de baladas que um delegado. Estava casado a menos de dois anos e na ativa como delegado a menos de quatro, obviamente nunca vira nada assim na vida. Chegou a casa apenas muito tarde da noite no dia do crime. Exausto mas não achava que fosse dormir fácil, sua esposa e a sua filhinha já estavam dormindo e ele achou ótimo, foi para cozinha beliscar algo à cabeça rodando revivendo os horrores que viu naquela casa e o olhar vazio daquele menino assassino.
Como ele fez aquilo?
Por que ele fez aquilo?
As perguntas pareciam mesmo fadadas a não ter respostas. Não viu nada na casa que desse qualquer vestígio de explicação do que motivou aquela carnificina. Os vizinhos eram unanimes em dizer que todas na família se adoravam.
Então lembrou do único elemento que realmente achou estranho na casa.
Quando subiram ao quarto do garoto havia um velho toca fitas ligado, um cassete estivera tocando ali ate o fim, a capa estava sob o tampo do aparelho, uma capa azul profunda sem inscrições ou desenhos.
Curioso ele rapidamente voltou um pouco da fita, mas não ouviu nada.
Deu de ombros afinal aquilo não podia ser relevante no caso não é verdade?
Mas o fato e que não esqueceu. Havia algo de familiar naquela capa azul.
Algo incomodamente familiar.
A lembrança veio num estalo o fazendo saltar da cadeira.
No quarto de hospedes que era mais deposito que quarto, entre zilhoes de tranqueiras que ele e a mulher se recusavam a jogar fora havia um velho toca discos e uma pilha imensa de velhos discos de vinil, outrora pertenceram ao falecido tio de Marcelo. Foi ate La correndo esquecendo-se de ser cuidadoso para não acordar ninguém.
Remexeu nos discos atabalhoadamente e achou.
La estava...
Um disco de capa totalmente azul... Um gélido azul. Sem marcas sem nomes sem inscrições!
Pôs de imediato o disco para tocar...
Primeiro silencio... um silvo...
E SEUS OLHOS E A SALA INTEIRA ENCHERAN-SE DE UM AZUL... UM PROFUNDO AZUL.

RODRIGO CABRAL

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Comentários

  • Angélica tem razão, é de tirar o fôlego! Aplausos! Bjs

  • Estou entre admirada e chocada...rsrsrsrs... É sensacional e ao mesmo tempo chocante ( me repito)... Totalmente inesperado!!!! É de tirar o fôlego e prende até o fim... Deixa um gostinho de quero mais!! Fabuloso suspense!!! Parabéns!!!! DESTACADO!'
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CPP