Sal da terra

 

Sal da terra

Sempre fui curiosa e certa vez trabalhei como apontadora de café numa fazenda: contava os sacos de café colhidos e fazia os pagamentos. Para mim era diversão pois não precisava trabalhar. Minha vida sempre foi muito abastada. Meu pai era do Exército e sempre supriu todas as necessidades. Então eu não entendia muito bem o quanto era laboroso e árduo o trabalho daquelas pessoas.
Eu gostava do "povão" como dizia minha irmã. Gostava e gosto muito de estar perto de pessoas simples, que independente dos bens que possuam não perdem a humildade. Não me sinto nem nunca me senti que era "rica", de família tradicional, de "nome" na cidade. Esse status de "elite" não cabe em minha vida. 
E também não entendia o porque de meu fascínio pelos idosos e idosas. Tenho uma empatia enorme e um respeito imenso por sua sabedoria. Não entendia até deparar-me com um texto maravilhoso de meu amigo Edvaldo Rofatto cujo título é "Bendição". E então percebi o que tanto me encanta nestas pessoas: as suas histórias. Em como contribuíram com seus trabalhos árduos e o suor de seus rostos para o progresso de onde viveram. Me fascina os relatos das épocas idas, das lembranças carinhosas e do respeito pelas suas trajetórias e tradições.
Creio que exista uma aspas em minha vida por que estes relatos, de minhas famílias, foram-me omitidos; talvez um pequeno relato aqui ou acolá de minha saudosa Vó Conceição que amava contar histórias.
Costumo dizer que os vozinhos e vozinhas são a história viva e estão aí para nos contar o que e como viveram nos momentos importantes da História de nosso País. Mas infelizmente muitos são abandonados, tratados como senis que não possuem mais nada para contribuir. Leso engano. Quanta riqueza e sabedoria há em suas vidas, a espera de alguém que pare para conversar um pouquinho, que os trate com o respeito que lhes é devido.
Estes são os verdadeiros "sais da terra", eternas "bendições" com suas lutas, suas vivências.
Transcrevo aqui, com a permissão de meu grande amigo e exímio escritor e poeta Edvaldo Rofatto, o texto magnífico que nos remete à uma reflexão ímpar.

BENDIÇÃO

(para Otávio, Henrique e Vítor)

Todos os que vieram antes de mim,
Foram forjados de terra.
Graças a Deus!

O amor com que eles a cultivaram
Deu-lhes duras marcas desse labor:
– Lida com terra grava à flor da pele
Sinais de fino trato com enxada e podão,
Espinhos nas palmas e flores na alma,
Mas também ensina uma religião
Capaz de fazer do homem um deus 
Que ama cria enterra e ressuscita, 
Semente filho neto sobrinho velho,
Como todos eles bem fizeram,
Num eterno ciclo de laço e labuta,
Graças a Deus!

Terra amorosa,
Poeira subida na valsa dos ventos 
Foi enchendo de telúrico fôlego 
Pulmões de tanta gente,
Força inalada para levantar 
Mil vezes podões de cana,
Mil vezes cabos de enxada,
Mil vezes crianças ao colo,
Todas as vezes, do solo ao céu,
Olhar de exata e infinita compreensão:
Assim como é embaixo, é em cima.
Quintessência entranhada
No suor corrido no rosto, 
Misturado aos olhos e à saliva: 
Pele, mucosas, papilas de terroso sal.
De terra fomos – e para sempre seremos!
Pai que abraça, mãe que embala,
Colo que sempre aconchega.
Graças a Deus!

Dai-me, Senhor, que eu me sinta
Mais puro e nobremente vestido,
Quando tiver todos os meus poros
Abençoadamente cobertos de terra
E limpos do que é a miséria dos homens:
Egoísmos, ganâncias, torpezas.
Assim poderei me reencontrar com os meus,
Do jeito como fui preparado por eles.
Assim poderei me misturar com os meus, 
Sabendo-nos feitos da mesma matéria.
Assim poderei enterrar em mim este menino,
Em perfeita paz e plena serenidade,
Tributo de gratidão imensa aos meus:
Na terra, tiveram seu campo de trabalho,
Seu eito de retidão para as boas histórias: 
Nascer, crescer, morrer, renascer 
– Semeadura e colheita no infindável cultivo 
Da vida para a safra das boas lembranças.
Que me encha dessa terra meu último suspiro,
Que a ela eu me misture para ser adubo 
Do que há de florir em alheios canteiros
Que nela eu me disperse 
E estenda meus braços às sementes 
E acaricie de tantas raízes o sono leve 
Que é vigília para primaveras dormentes.
Deus permita!

(E. Rofatto)

Maria Angélica de Oliveira - 29/07/18

In Liga dos 7 


Imagem: No Cafezal - Georgina de Albuquerque, 1930 - Óleo sobre tela ( Google Imagens)

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Angélica

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Comentários

  • 71011525?profile=original

    • Obrigada Marso pelo carinho e destaque!!

  • 70974024?profile=original

    • Obrigada Ciducha linda! 

  • Destaque plenamente merecido aplausos fantástico abraços 

    • Obrigada Meire querida pelo carinho!

  • Receber a atenção da sua leitura e comentário, quando publiquei este texto, foi uma alegria muito grande, Angélica, mas experimentar essa interação num dueto verso/prosa é mesmo uma honra. Dos textos que tenho, este é um dos mais importantes pelo conteúdo autobiográfico (por isso o dediquei a meus filhos), e quando você vem e traz também a sua sensibilidade e a sua história autobiográfica conectando os dois textos, só posso me sentir profunda e carinhosamente lisonjeado. Muito obrigado!

    Também nesse texto, de muita sensibilidade, você nos revela porque é merecedora de toda a admiração ao nos contar o apreço pelos familiares e a preocupação com os idosos.

    Ter a sua amizade é um privilégio;  ter a sua parceria, uma honra, minha querida amiga poeta!

    (Peço sua licença para levar seu texto à minha página e colocá-lo junto ao meu.)

     

    Angélica, sabe da minha admiração pela pessoa e pela poeta que é

    • Caro Edvaldo sabes também o quanto te estimo e admiro e será uma honra estar com nosso verso/prosa em tua página!  

      Muito obrigada pelo carinho !

  • 63325489?profile=original

    • Obrigada Edith querida! 

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