Amarelinho
Há muito, muito, tempo. No tempo em que os animais ainda falavam, por um motivo qualquer e que ninguém conseguia explicar, começaram a desaparecer todos os animais selvagens. Todos, todos, não, pois as aves de rapina não se viram apanhadas por tal razia. Nem as aves de rapina, nem os animais domésticos, o que começou a provocar algum mal-estar entre estes, que as acusavam de serem elas as culpadas de tal razia e que só não os atacavam a eles, por estarem protegidos nas casas dos seus donos.
Como o fenómeno não abrandasse, o abutre resolveu convocar uma reunião da Associação das Aves de Rapina, com o objectivo de decidirem o que fazer, visto o seu sustento começar a ficar ameaçado.
Quem resolveu assistir à dita reunião, às escondidas das aves de rapina, foi Amarelinho, um bonito canário que vivia em casa de um sexagenário, o qual nunca o fechara numa gaiola, pois defendia que os pássaros deviam andar à solta e poder voar à sua vontade, por isso, quando lho deram, ainda em pequenino, dissera-lhe que iria deixar a gaiola aberta e ele que decidisse, se queria ficar, ou ir embora. Amarelinho, percebendo a generosidade do seu dono, resolvera ficar e fazer companhia ao velho homem. Este pagar-lhe-ia a sua lealdade com bons tratos.
Amarelinho conseguiu entrar sem ser visto, escondeu-se entre as traves que sustentavam o telhado do velho barracão e foi assim que pôde ouvir a tramoia pensada pelo abutre. Iriam falar com todos os animais domésticos, com o objectivo de os conseguirem levar a revoltar-se contra os seus donos, para depois, quando já não tivessem a protecção daqueles, os poderem comer sem qualquer perigo.
Amarelinho esperou que todos partissem, voou até casa e contou, ao dono, tudo quanto ouvira, pedindo-lhe que alertasse os outros habitantes da vila, para que protegessem os seus animais, explicando-lhes as verdadeiras intenções das aves de rapina. Era preciso unir esforços para impedir que as aves de rapina, lideradas pelo abutre, atingissem os seus objectivos e enganassem os restantes animais.
O dono de Amarelinho foi de casa em casa a alertar todos os vizinhos. Só que era tarde de mais, os animais domésticos, ludibriados pelas palavras dos mensageiros das aves de rapina, já tinham marcado uma reunião magna com o único objectivo de definirem formas de luta contra aqueles que os tinham mantidos presos durante toda a vida.
Amarelinho, mais uma vez, decidiu marcar presença na reunião, afinal também era um animal doméstico, e foi nesta condição que, quando os ânimos estavam bastante exaltados, por influência de alguns infiltrados a mando das aves de rapina, pediu a palavra e se dirigiu à assembleia:
- Caros amigos. Já pararam um pouco para pensar em quem é que poderá ter tanto interesse que nos revoltemos?
- Não! Quem é, Amarelinho?
- Pensem comigo. Quem é que está a começar a precisar de todos nós?
- Quem?
- As aves de rapina. Elas é que estão a ficar sem comida. Quem vos aconselhou a revoltarem-se? Por acaso não foram os mesmos que vieram aqui prometer-vos ajuda e protecção? Pensem bem no que vos digo.
Os mensageiros das aves de rapina, vendo que a assembleia dos animais domésticos começava a acreditar nas palavras de Amarelinho, pensaram logo numa maneira de o desacreditar:
- Vocês não podem deixar-se enganar por um canário que sempre foi um lacaio do seu dono. Quem sabe se ele não está aqui a mando desse mesmo dono. Vamos mas é acabar com ele.
Amarelinho, vendo que os animais domésticos preferiam dar ouvidos aos mensageiros, procurou salvar as penas, voando dali para fora e esperando que o tempo não lhe desse razão, pois preferia vir a ter de passar por mentiroso, do que ver como os animais domésticos se tornavam vitimas da sua própria imprudência.
Os ares encheram-se de palavras de ódio contra os donos que sempre tinham tratado deles. Passados dias, Amarelinho, através da janela do seu dono, assistia à degola dos animais domésticos, às garras das aves de rapina, não conseguindo evitar uma lágrima ao verificar como era o único que sobrevivia a tão devastadora mortandade por parte das aves de rapina.
Moral: Trocar um amigo verdadeiro por um falso, é o mesmo que cavar a própria sepultura.
Francis D’Homem Martinho
25/10/2019