Mamangaba
J. A. Medeiros da Luz
Sob este sol de calidez oblíqua,
Nadando etereamente na brisa da manhã,
Ora a sotavento, ora a barlavento,
A traçar virtuais helicoides e parábolas,
Imerso num zumbido humílimo de umas asas,
Eu, esta pesada mamangava,
Com anéis heráldicos em jalne no abdômen,
Entre o belo negror de queratina,
Afrontando leis da física e da metafísica,
Sigo incansável, em voo, laboriosamente,
Em demanda de margaridas e rosas e begônias,
Pungindo de inveja o presumido espectro
Daquele fulgurante Leonardo da Vinci,
Que não voou, enquanto carne e pele e ossos.
Pois, num desplante, ousa-me considerar,
Sei lá por que (por mal de meus pecados?),
Um estrupício feioso e repelente
O moleque dentuço que agora há pouco
(Aquele biltre desalmado!)
Quase me acerta uma raquetada,
Lá na latada do maracujazeiro em flor?
Ou iguaria sou, na aferição,
Contabilização nutricional daquela,
Atilada lagartixa verde que,
Ali, do canto de seu muro, espreita,
Oscilando estranhamente o encéfalo,
Mira, remira, segue com volúpia,
Minha trajetória espiralada em arabescos
Neste sobrevoo sobre as azaleias,
De pétalas tão doces, tão dulciolentes?
E por que, afinal, nos importaria isso?
Fruamos os dias, ó amigos que me observais,
Recostados nas cadeiras rendilhadas da varanda
Empunhando, também alvas, porcelanas,
Plenas de café da variedade arábica,
Com ar meditabundo como se estivésseis
Prestes a — novos próceres do mundo,
Novos Leonardos! —
Aclarar os vastos segredos do cosmo.
Talvez, em vossas perquirições insignes,
Tenhais descobrido que a vida, ela mesma,
Não passa de iguana, de camaleão, de lagartixa
Esperando aquele dia gravado nas estrelas
No qual a sua língua do destino, pegajosa,
Irá nos finalizar os dias de voejo.
E deixando, de nós outros, somente o rastro
Nas moléculas do céu, e a convicção
De que, embora ínfimos, teremos, sim,
Sido úteis ao concerto universal,
No semear inesgotavelmente o futuro,
Levado a reboque, sem estardalhaço,
De jardim para jardim, de horta para horta,
Aderido às patas minhas peludas
E abarrotadas de pólen, grávidas,
Grávidas de vida futura.
Ouro Preto, 01 de março de 2022.
[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]
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