A ponte

                                                  A PONTE

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                                            Miguel Carqueija

 

 

   É quase meia-noite, uma noite feia e soturna de nevoeiro, quando Priscila, deixando o orelhão, dirige-se a passos rápidos de volta para o hotel, cruzando os braços de frio e liberando névoas com a expiração.

   Priscila Barros, 26 anos, morena, magra, estatura média, bonita; veste-se com roupa preta, adequada à temperatura, sapatos escuros e mangas compridas; uma mochila marrom às costas. Ela está há uma semana em Solidão, pequena cidade portuária do sul; está apenas pesquisando os peixes da região, para a sua monografia. E também curte uma recente decepção amorosa.

   Priscila é uma pessoa comum – e não pode imaginar que, em poucos minutos, sairá do padrão normal da existência para penetrar numa região diferente... um anexo da realidade.

   Ela atravessa a rua soturna e silenciosa, sentindo-se enervada com o ruído dos próprios passos, bate com os braços no corpo para se aquecer e de repente avista, ao lado do pequeno poste, na calçada para a qual se dirige, a figura de um homem.

   É um rapaz branco, de faces encovadas como um zumbi. Veste-se mais ou menos, e a fita com um olhar que não deixa lugar a dúvidas. Priscila recua.

   Com os olhos injetados, como se sofresse de alguma febre malsã, ele se move em sua direção. Priscila recua mais, olha para os lados; tudo é negrume e silêncio.

   -Venha cá! – diz o rapaz, agora encaminhando-se decididamente para a garota.

   Nos contérminos do pânico, ela dá meia volta e desata a correr.

   -Volte aqui! Volte, sua cadela! – grita ele, e parte atrás dela.

   Priscila já lera sobre fisiognomonia.  Aquele rosto, chupado e cheio de enanteses, diz a ela – ou assim crê – das taras íntimas daquele indivíduo. Priscila corre, como nunca correu na vida; pedir socorro parece-lhe inútil e um desperdício de energia, quando já sente faltar-lhe o fôlego. No pavor da fuga, com os passos da corrida de seu perseguidor reboando nos seus ouvidos, a jovem nem planeja a rota de fuga – e quando menos espera está na ponte que leva à outra cidade, do outro lado da angra. Como passou pelos empórios portuários sem nem reparar e chegou aqui tão depressa? Mas como conseguiria alcançar o outro lado? O atacante ganhara terreno, aos poucos vai se aproximando.

   É então que a cerração que encobre a ponte de pedra vai se adensando rapidamente. Espantada, Priscila constata que a visibilidade vai diminuindo num instante, logo já não enxerga praticamente nada à sua frente a não ser aquele espesso  smog cinza-azulado. Mesmo assim, confiante na retidão da ponte, ela prossegue a corrida, escutando o tenso e ameaçador arfar do seu inimigo.

   Algo lhe parece estranho nisso tudo. Primeiro, a ponte não acaba; segundo, após alguns metros dentro do nevoeiro, o seu fôlego, já nos estertores, parece retornar plenamente. Como é isso?  Quem diria que a neblina possuía efeito estimulante?

   E aí a visão começa a clarear. O arfar parece ter mudado de posição. Algo está errado: à sua frente não se avista a cidade de Redobre, mas a mesma Solidão, que ela deixara para trás. Sutil e rapidamente, o seu estado de espírito parece ter mudado de forma misteriosa. Ela sabe que, mesmo cega pela neblina, não retornou sobre os seus próprios passos, continuou correndo em linha reta. E agora um vulto corre à sua frente, em desabalada carreira, quase aos tropeções, parando de vez em quando para olhar para trás, com olhos esgazeados de terror...

   Um vulto masculino. O mesmo homem que, antes, a perseguia.

   Priscila lera certa vez e apreciara muito “Alice no País do Espelho”, aquele livro fantástico do Lewis Carrol.

   Quem sabe, do outro lado do espelho – ou de um “fog” super-espesso – ficaria o mundo do reverso, um mundo onde as coisas funcionassem de maneira oposta?

   Um mundo onde os homens é que fugiriam, apavorados, das mulheres que quisessem violentá-los?

  

(imagem pinterest) 

  

  

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Comentários

  • Um enredo pertubador, mas que reacende muitas discussões acerca dos comprotamentos humanos. Saudações

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