A sort of reckoning night
J. A. Medeiros da Luz
Par de retinas insones filtra a cena,
Na antemanhã da fuliginosa megalópole.
Não, não há o murmurejo hipnotizante
De fonte límpida, borbulhante,
Alumiada pelo palor aveludado da lua,
E que por cujo perímetro de aconchego
Derramar-se-iam uns transientes
Ramos, carregados de flores na Primavera;
E nem se ouvem sussurros de amantes.
Não!
Uma fria lâmpada de LED, em frente,
Desde sua altitude de aluguel,
Asperge gelidez por meio dum cone de luz
Sobre a caçamba de coleta de lixo,
À volta da qual farejam, expectantes,
Dois cães a exibir o claro-escuro
Dos feixes de costelas,
Magérrimas, magérrimas,
Pulsando breve e em sincronia
Com aquele seu arfejar das narinas,
Irrequietas, rápidas, úmidas de esperança.
Ouro Preto, 12 de janeiro de 2021.
Comentários
O retrato perfeito das ocorrências de uma noite de vigilia, ou de horas de vigilia.
Tudo aqui é teu, é tua alma, teus olhos a observarem todos os sonidos ao longo do olhar..
É prazeroso ler-te!
Um abraço!
Cara Edith:
Muito obrigado pela visita ao sotãozinho do J.; e pelo incentivo. Como havia colocado, nas entrelinhas, para nossas queridas Margarida e Marcia, as vivências pessoais são (naturalmente) únicas, mas acabam se mesclando com o substrato cultural que as permeiam. É aquela verdade expressa na frase felicíssima do Ortega y Gasset (no "Meditaciones del Quijote", de 1914): "eu sou eu e minha circunstância". Aí é que entram as fibras e fiapos "inesgarçáveis" das leituras de nossa juventude. E aí reside uma grande vantagem da madurez do sujeito: embora sejam indeléveis tais influências, elas não são as forças dominantes. O domínio, o controle dos cabrestos dos corcéis dos eventos, está com nossa essência, produtos de nossa ruminação pessoal das vivências que o (vá lá...) acaso nos põe no caminho.
E isso me parece a gênese do milagre: cada voz acaba por soar como única, genuína (embora circundada por aquele arranjo — no sentido musical — consoante com a era em que cada ser calha de existir).
No que concerne à geografia interior pessoal, tenho, nas retinas da memória, cenas dos pequenos burgos da infância (em Goiás, Santa Catarina), das megalópolis da juventude (Goiânia, Vitória, Rio de Janeiro, B. H. — que eu, querendo me passar por bardo, por vezes a batizava, num carinho jocoso de pós-graduando, de Belo-Horizonte-sobre-o-Arrudas...), da vivência provinciana de vilas de companhias mineradoras e das cidades interioranas. Hoje, Vila Rica de Ouro Preto voltou a ser meu lar, uma vez que já o havia sido, nos anos de discente acadêmico, naquele período plúmbeo da ditadura militar — que Deus e nós outros nos protejamos de retorno, a qualquer pretexto.
Abraço;
j. a.
Cara Margarida:
Agradecido por palavras assim amáveis, que nos fazem a nós perseverar, quando já cuidávamos (felizmente não neste nosso espaço virtual) clamar no deserto ou — equivalentemente — discursar para as vagas do mar, como fazia o velho Demóstenes, a treinar e, de quebra, corrigindo a gagueira com um seixo na boca...
No que concerne à gênese deste poemeto, há obviamente a cristalização de vivências. Nas madrugadas de eventual (e não tão rara) insônia, por vezes me posto à janela para ouvir, imersos na costumeira neblina de Vila Rica, os ruídos da noite (rãs na lagoazinha fronteira, galos territorialistas, latidos esparsos no longe das encostas, e espacejados veículos de boêmios…). Meu quarto e de minha esposa fica elevado e em recuo e vejo, a cavaleiro, amiúde alguns vira-latas em batidas silenciosas por restos de comida, pelas calçadas. Percebe-se, nitidamente, que lá se comunicam de modo inequívoco e imediato, apesar daquele espesso silêncio deles. Pois essas cenas nos ficam no inconsciente e afloram, vez ou outra, transmudadas e mescladas com outras diversas e igualmente subjacentes vivências e cenas remotas, no fazer literário. Daí depreendo que esse foi o caso, aqui, pois a ambientação se dá, alegadamente, em uma cidade tentacular e não em minha atual aldeia, a cultivar (acertadamente) o orgulho de suas modestas proporções.
Abraço;
j. a.
Obrigado, cara Marcia:
Depois de escrevinhá-lo e postá-lo, ao ler este poemeto, pairou a sensação de que possa ter havido inconsciente inspiração de nosso velho M. Bandeira — respeitadas, obviamente, as proporções. Reporto-me a poemas como O Beco e O Bicho, poemas tão impactantes em minha mocidade, ambientados intrinsecamente no cenário urbano, com aquela impassibilidade de tijolos e cimento Portland frente aos dramas dos seres humanos e de seus comensais (que culminam sendo nossos semelhantes, mais do que gostaríamos de admitir).
O mote explícito deste poemeto seria o contraponto da temática ultrarromântica (espezinhada, ainda que de modo — ao menos para mim — inconvincente) na primeira estância com o rude realismo (inequivocamente abrandado pela empatia exsudada) na segunda, o qual realismo deveria sagrar-se vencedor, em tal contenda. Acaba que me fica a robusta impressão de que o poema, em seu todo, navega pelos mares do sentimentalismo, inda que negado...Será sina, meu Deus?