“Nascer é uma possibilidade, viver é um risco, envelhecer é um privilégio” – Mário Quintana
Ela chegou de mansinho, sorrateiramente, sem fazer alarde, com um tanto de timidez, devo confessar. Diferentemente dessas que espontaneamente se aproximam esfuziantes e nos envolvem tornando-se logo íntima. Não tenho na memória a data exata dessa aproximação, sei que estava às vésperas de me tornar um sexagenário, na inconsciente expectativa de que em algum momento o calendário frio da existência acusaria a lenta metamorfose pela qual é destinada a quem consegue galgar os degraus desta vida terrena. O tempo da nossa passagem nesse plano, assim como conhecemos, tem o seu preço, o envelhecimento do corpo, não que o envelhecimento seja um castigo, talvez um prêmio por algo inexplicável, ou a certeza da fragilidade do ser, desafiando a saúde e a vitalidade.
Assim, a tal visita, agindo como uma síndrome matreira, invisível a olho nu, evasiva a um Raio X e, mesmo entregue à sorte de uma Ressonância Magnética, foi se aproximando e ganhando espaço sem uma causa aparente que pudesse definir sua chegada, causando medo e incertezas. Aos poucos, foi me envolvendo e ganhando terreno. Mexeu com o meu cognitivo.
Agora, senhora de si, incomoda o meu físico, perturba o meu psicológico, por vezes deixa-me trôpego, trêmulo, limitando os meus movimentos, por mais simples que sejam. Provavelmente, quero crer, foi num momento no qual a minha vida passava por um processo de transição, com a chegada na terceira idade, a tão aguardada aposentadoria e a expectativa de uma nova fase para curtir a vida.
Embora ainda me sinta produtivo, quis as circunstâncias que as minhas atividades profissionais diminuíssem pouco a pouco. Pegou de jeito o meu estado emocional, sem que eu tivesse chance de escapar, por mais que desejasse.
Fragilizado, não tive forças de reagir à invasão da qual estava me submetendo. Sequer sabia quem estava ocupando o espaço da minha intimidade. Hoje, refém dessa visita, percebo que ela, embora plenamente presente em minha vida, torna solitários alguns dos meus momentos. Limita as minhas atividades, usurpa a minha autonomia, já não sou dono dos meus passos, muito menos das minhas idas e vindas. Os caminhos se tornaram árduos e as distâncias se ampliaram.
Mesmo assim, difícil fazer entender aos que me cercam, tenho lá minhas limitações, quero que respeitem minhas lágrimas e não que questionem o meu silêncio, por mais que tento exaustivamente explicar que não escolhi esta companhia, tampouco aponto culpados. Bem sei o quanto é difícil expulsá-la, cabe a mim, somente a mim, seguir e caminhar com ela, mesmo que a passos lentos e claudicantes e viver um dia de cada vez. viver com intensidade e alegria, como se todos os dias fossem domingo, domingo no Parkinson de diversões.
Comentários
Um Belo, Poético e Sentido texto.
Parabéns!!!
Fraterno abraço... D'Áquém-Mar.
Perfeito é assim mesmo que essa visita chega parabens poeta a minha chegou aos 71 anos CA
Boa noite poeta
SAMURAI..meu amigo !
Meu querido imagino o quanto essa visita não foi desejada mas foi adentrando o seu universo.
Eu também tenho tido as minhas visitas ...
Detesto certas visitas ....mas elas acabam chegando !
Mas precisamos ter fé que o impossível é especialidade de Deus ...
Sei que não é fácil ouvir que vai passar quando estamos numa situação que parece que para o tempo ao nosso redor ...
Lágrimas lavam a alma
Silêncios são pontes que nos levam a ouvir a voz divina que habita em nós embora as vezes em meio a nossa agonia nem sempre atentamos .
...
Mas Samurai você é guerreiro de valor ,lembre-se disso !
Um abraço fraterno desta Fênix
Paz e luz para você
SAMUEL......Que fantástico texto Que Deslumbramento de apresentação da visita que adentra as nossas portas sem sequer nos pedir licença e no fim nos dominar..... Lagrimas são de respeitar e quanto!! na minha degenerativa ELA ,são a fala e o discurso da Alma!....
Tal como o escritor Pedro Avelar penitencio-me de SÓ hoje ver e ler seu pedaço de Alma dorida magoada...Espero que seja uma lenta progressão de Parkinson, para conseguir ter bons momentos de aegria e conviviode amigos e familia! O não viver psicologicamente em doença é muito importante.Conversar com o corpo tambem fazer sentir aos membros e aos neurónios que têm que trabalhar que são necessários!
Deixo--lhe aqui um poema do grande poeta português Miguel Torga que nos fala dos grilhões que teimam em nos acorrentar...
Querido poeta Samuel, urmanados na paciência e na grandeza de sermos capazes de nos ultrapassar nas tribulações da Vida receba meu abraço de vida plena, que sei vai ainda viver e desfrutar 😉🌞❤️💜💖
Abraço
Chantal
Efetivamente, felizmente em todos os casos, há os premiados que são eleitos para conviver com tão dispensável companhia! Não há escolha, foi escolhido e há de subordinar-se aos problemas que dessa indesejável companhia se apresentam! Mais do que efusivos parabéns pelo excelente trabalho! Philia e Namastê!
Maravilha de leitura!!!Texto com extrema sensibilidade e sabedoria.
Final surpreendente com um toque de ironia sobre a vida e o viver.
Grata pela partilha
Abraço
Caro Amigo e Poeta Samuel: Saudações Poéticas.
Ao invés de pedir desculpas, digo OBRIGADO, por nos brindar com a preciosidade desta Prosa Poética. Nossa CPP - que chamamos de Casa dos Poetas e da Poesias, também pode ser chamada de
CPP = Casa das Prosas Poéticas e ou ainda
CPP = Casa dos Poetas Parkinsonianos
Como bem dissestes, cada um de nós, mais cedo ou mais tarde, de um modo ou de outro, recebemos visitantes indesejados, que nos acompanham até o The End dos Filmes de nossas vidas.
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Que teu visitante "sem convite" permita-lhe usar dos dons poéticos da inspiração escrita e ou falada, tal e qual a que nos brinda.
Sem pressa, no seu ritmo e conforme possa, nos brinde mais com maravilhosos e HEMOcionantes momentos qual da leitura com que nos deixastes docemente embriagados!
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ET.: Como Gestor da Casa, devo LER e Interagir mais amiúde os sentimentos aqui expostos. Talvez seja "defeito hereditário" dos que qual a mim, tem um nome " A velar"
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Penitencio-me, pelo descuido em só ter chegado agora a esse texto maravilhoso, mas de fato intimista e comovente. Registro minha solidariedade.
Belo trabalho
Um texto comovente. A vida impõe desafios diversos e no entardecer do tempo, algumas complicações nos acometem. Sei bem como é, pois tenho meu pai com o Mal de Parkinson e chegou, de forma inusitada e fez ali no corpo e mente dele um lugar de demonstrações da limitações físicas. Deixo -vos votos de òtimo dia e alegrias.