Cogumelos ao sol

Cogumelos ao sol

 J. A. Medeiros da Luz

 

Como nos exclama, embora emudecida,

A solidão do seixo entre tantos!

Seus lombos, úmidos do orvalho

Que se condensou na antemanhã,

Chispam reflexos dourados da aurora.

 

E cada dorso (já em pouco, tépido de sol),

Com suas corcovas e vilosidades,

É uma história única de vida!

 

Lá na escalavrada pele, lanhada,

Lixada dos trambolhões nas enxurradas,

Limada dos vórtices da correnteza,

Polida, afinal,

Após um assuntar de séculos nos rápidos,

Nos igarapés, nos córregos;

Lá nos volteios dos seus dorsos rígidos,

Eis que semelham estranhas tartarugas,

Dormitando à beira dos ribeiros,

Sobre as quais vêm lamber respingos

—Sempre em hordas coloridas e fugazes —,

As buliçosas e inquietas e silentes e assustadiças

Borboletas das campinas.

 

Entretanto — esdrúxulo que sou! —,

Estes meus olhos, que a idade faz

Um tanto sorumbáticos, enevoados,

Calejados já, cismáticos

Dessa humana multidão de seixos,

Rolando virtualmente seu curso pelos cantos

Do viver e do sobreviver,

Desde seus veios (engastados

Na ingremitude de fráguas e penedos),

Até à praia do silêncio e dos jazigos,

E estes olhos — digo — os veem

Não pedrouços (que assim se creem),

Mas uns aglomerados frágeis, frágeis,

De cem cogumelos brancacentos

Flagrados a se fingir de duros, esdrúxulos

Arremedos de seixos ao sol,

À fimbria do regato, após a chuva...

Ouro Preto, 16 de fevereiro de 2021

(Do livro: Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora em 2022).

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • A semelhança dos cogumelos, que parecem tão frágeis m sua constituição e, suportam todas as interpéries do tempo, assim o homem dentro de suas limitações várias, também carece de encontrar as ferramentas que o faça vencer suas fragilidades diante do mesmo tempo, ao qual envelhece e, um dia, terá de encerrar sua pisada por este solo, o cogumelo, se não for colhido, proliferará mais e mais a fímbria depois das chuvas e, mais e mais borboletas os sobrevoarão em paz.

    Maravilhoso!

    Meu Destaque!

    • Cara Edith:

      Agradeço-lhe duplamente: pelas palavras elogiosas e pela precisão de anatomista no manejo do bisturi, ao dissecar as entranhas das mensagens que o macrocosmo emite e que o microcosmo (corporificado num escrevinhador) tenta semear por via de suados versos. 

      Abraço;

      j. a.

  • Pessoal:

    Na verdade, esses minúsculos cogumelos da foto abaixo, nascidos à revelia num vaso de nosso quintal (com sua beleza heterodoxa e evanescente...), deram-me o mote do poema, que há dias vinha cogitando, no subconsciente.

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    É que, também à minha revelia, percebi que haviam já nascido, nas sombras das gavetas virtuais de meu PC, uma vintena de poemas da maturidade, forçando-me — por assim dizer — a excogitar um próximo e não esperado filho tipográfico, a que de antemão dei o nome de batismo: "Seixos ao sol". Título motivado pela sutileza dos aspectos que passam da gente despercebidos e que somente na maturidade damos conta de que têm o seu estranho atrativo. Serenidade  de viver, quero crer que seja o leitmotif do tal livrozinho, ou — como já explicitei em um poema aqui postado — a chegada da era tranquila e sem sobressaltos existenciais, a era da quietação das vagas. Acaba sendo o desejo de fruição de uma serenidade telúrica, em consonância com as grandes e pequenas coisas do cosmo, na reciprocidade do gravitar: elas ao nosso redor e nós, harmonicamente, ao redor delas.

    Tenho por hábito amarrar o título de um feixe de poemas a alusões a si, veladas ou explícitas, dentro de ao menos um dos poemas, o qual serviria como pivô, permitindo-me vocês o galicismo. Desta forma, uma vez que os poemas da vintena de que falei, embora se encaixem na proposta filosófica do título, não têm em seu bojo verso que a ele remeta, há umas poucas semanas estava com essa pendência nas profunduras, povoadas de neblinas e relâmpagos, do subconsciente. Eis que desovo, afinal, a solução, com ligeiros tons mais sorumbáticos que a alegria visual de seixos à borda dos riachos, visto que a vida, embora sendo  bela, tem lá os seus claros-escuros — e não os expressar pareceu-me um certo douramento de pílula. Daí, o paralelo, talvez um bocadinho perturbador, entre seixos e cogumelos...

    E já que, pela recomendação terminológica da Unesco, livro há que ter um mínimo de 49 páginas (*), tendo já coisa de 32, projetei-lhe o arranque, a sua consubstanciação para meados (talvez no começo do inverno) de 2022. Isso, obviamente, se as parcas nos forem benévolas, mais que as musas...

     Abraços.

     (*) "A book is a non-periodical printed publication of at least 49 pages, exclusive of the cover pages, published in the country and made available to the public"

     

     

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