E meu tio trouxe de África

E meu tio trouxe de África

Por J. A. Medeiros da Luz

 

“Meu tio trouxe de África sequoias”.

Seria um respeitável decassílabo

(Com cesura na sexta, antes da tônica

Final, no heroico metro de Camões),

Mas iria falsear toda a botânica,

E isso pra dizer a chã verdade.

De fato muita coisa trouxe ele,

De estada prolongada em Angola.

Trouxe de amigos nomes africanos,

Trouxe estátuas de ébano esguias,

De moças com o ébano na pele.

Trouxe lusofonias variantes,

E mais coisas de que já não me lembro.

Entre essas coisas muitas que ele trouxe,

No fundo da bagagem, em latência,

Lá dormitavam, bem pacienciosas,

Sementes de baobás — e não sequoias!

Sementes de imbondeiros, que são, hoje,

Árvores mui robustas, que respiram

A brisa e os fótons doces das Américas;

Embora inda farfalhem uns lamentos:

É banzo pela tribo tão distante!

Meu tio trouxe de África, afinal,

O seu baú de sonhos — e uns dólares,

Pois que também ninguém de ferro é.

Ouro Preto, 17 de dezembro de 2020.

Enviar-me um e-mail quando as pessoas deixarem os seus comentários –

J. A. M. da Luz

Para adicionar comentários, você deve ser membro de Casa dos Poetas e da Poesia.

Join Casa dos Poetas e da Poesia

Comentários

  • This reply was deleted.
    • Cara Margarida: Sinto-me agradavelmente obrigado, por sua visita e comentário. Nossa ligação com as árvores, enquanto primatas (hoje adornados com vestes), sempre foi reverencial, até antes do advento desse vale-tudo da civilização atual, que se autopromove com o adjetivo de "pós-moderno". O milagre mais que termodinâmico da vida se expressa muito bem naquela sementezinha que, por vezes, voeja no vento e — ao fim e ao cabo — se transforma em colosso vegetal a dar abrigo e sombra a uma gama de seres vivos.

      Aproveitando o ensejo, desejo, a você e aos nossos confrades da Casa dos Poetas e da Poesia, um frutuoso 2021; carregadinho de saúde e realizações, como (de flores e frutos) se carregam os caules das jabuticabeiras pelos meados de setembro. Abraço. j. a.

  • Há, na história de vida de cada um, relíquias que precisam ser registradas. Esses homens de tua vida, faziam um ofício extremamente importante, trazer sementes e mudas de plantas de tão longe, era, ao meu ver, uma forma importante de disseminar espécies. Eu gostei muito de ler teus versos líricos.

    Meus aplausos!

    Bela tarde!

    • Cara Edith:

      Agradecido por suas gentis palavras. Aliás, o entusiasmo desse tio foi o responsável por eu ter vindo para a (quase sesquicentenária) Escola de Minas de Ouro Preto, sainte do colegial em Goiânia, lá pelo distante ano de 1975. Por temperamento mais afeito a cogitações e equações, não segui os passos profissionais de meu pai, com sua recatada abnegação de esculápio na faina hospitalar; faina de uma época em que, via de regra, os da classe dele não antepunham o dinheiro à integridade mesma da pessoa humana, como — nada raramente — constatamos hoje em dia. 

      Enfim, toda história de vida é fascinante. Muito fascinante.

      Abraço.

      j. a.

  • Lembrança de meu velho e finado tio, Acyr Ávila da Luz, geólogo (1948) entusiasta de Angola (onde residiu por anos) suscitou-me este poema. Assim como meu pai (o caçula), herdou ele um viés botânico de meu avô, chacareiro barriga-verde. Tendiam sempre, nas viagens, a retornar com sementes e mudas na bagagem. 

This reply was deleted.
CPP