Essa tardígrada boiada das lembranças

Essa tardígrada boiada das lembranças

J. A. Medeiros da Luz

 

      "Yo amo los mundos sutiles,

       ingrávidos y gentiles,

       como pompas de jabón."

       — Antonio Machado (1875 – 1939)

   

O estralejar de folhas secas do outono

Sob nossos pés, já algo vacilantes,

Evoca-nos cenas deslembradas

Já há décadas e décadas.

 

Os fossos, antes muito transponíveis,

Vão se fazendo vãos precipitosos,

Despenhadeiros onde se abismam ecos

De seixos rolados por acidente.

 

E que uivo latente é esse, de agora,

Como tinido nos tímpanos do ouvido,

Quando o vento perpassa pelo fraguedo,

Em ondas, a levantar reminiscências?

 

Em que córrego de aldeola

— Convidando a gazetear os afazeres —,

Perdi meu boné, larguei os meus caniços,

Os quais já se fizeram pó, conforme reza a lei

Entrópica da vida?

 

Tal cismar, afinal, suscita-nos uma dúvida:

Flui tudo isso pela membrana do presente,

Ou são somente sombras da caverna antiga,

De que nos assevera Platão, aquele

Pensador, incorrigível romântico, da Hélade?

 

                           Ouro Preto, 14 de maio de 2020.

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • Muito bom!!

    Aplausos poeta!

    • Obrigado, cara Ciducha.

      Que, naquelas sombras da caverna platônica do futuro, este nosso presente e os seus subsequentes vindouros dias, sejam-nos igualmente silhuetas reconfortantes pelo que terão — já então — representado frente a nossos desideratos. 

      Abraço.

      j. a.

  • Muito lindo.

    Parabéns,J A.!

    Abraço

    • Obrigado pela mensagem incentivadora, cara Marcia.

      Embora o tom do poema em tela pareça, à primeira mirada, algo tristonho, na verdade ele é percolado somente daquela doce nostalgia que sentimos quando compulsamos, vagarosamente, os velhos álbuns de fotos da família — e nos deparamos com pessoas e paisagens há muito esfumadas na poeira do passado. Ele está mais para um suave reviver de cenas e de afetos; e — no vê-lo por tal óptica — agrada-me mais que aquilo de o forçar a suspirar, feito mensageiro pessoal, imerso nas amarguras das perdas.

      Abraço do velho tropeiro virtual, j. a.

  • Muito lindo  J.A. Adorei. Parabéns!

    • Cara srta. Biscoli:

      Os velhos elefantes, quando refestelados em seus banhos de lama protetora, devem lá excogitar das trilhas percorridas, que lá se fazem compridonas. Também, por vezes — sentado à varanda ou estirado numa cadeira reclinável —, fico a assuntar sobre as veredas caminhadas, mercê da carroçada de dias já vividos. Obrigado por suas palavras, combustíveis do querermos prosseguir no encalço de mais horizontes virtuais.

      Abraço.

      j. a.

  • Belíssimo!!! Parabéns J. A. 

    • Cara Angélica:

      Obrigado pelos sempre gentis comentários. 

      Abraço;

      j. a.

  • Como assinalei, há pouco , algo pleonasticamente, a um velho amigo, embarcadiço daquela já vaporosa nau da juventude, essas brenhas virtuais do poema, por onde vageia o tal "eu poético" é a própria vida, de quem somos inquilinos (por vezes bem mal comportados)...

    E, em vista de explicitarmos, uma vez mais, nossa ampla e feliz latinidade, fiz uma pequena homenagem (citando-o) ao modernista espanhol Antonio Machado.

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