Lutas invisíveis

 

   

          A casa parecia cheirar apenas a água a ferver. Tem cheiro, a água, quando ferve? Neste caso, sim. As bolhas libertavam o cheiro da pressa. Saltavam, ansiosas por transformar as batatas em puré. Entre os meus dedos da mão esquerda um pobre tubérculo gemia, enquanto a direita manejava a faca, atingindo-o com duros cortes. A poesia... ah, a poesia ficara à minha espera. ´´ Que espere por melhores horas ``- pensei. Naquele momento a poesia era outra; a dos tachos, à luta com o meu cansaço. Mais um pouco, o derrotado tubérculo, seria um vaidoso puré de batata nos pratos, que já esperavam na mesa. Os convidados estavam ausentes. Encontravam-se na sala ao lado, mas ausentes. Eles não sentiam nem um pingo de curiosidade. Se assim fosse, teriam movido a cabeça, enquanto eu desabafava o meu enfado, batendo com mais força do que a necessária, com a colher de pau nos ombros do tacho que suava a bom suar. E o pobre pano da cozinha? Convertido a rodilha, experimentou a força de uma mulher aborrecida.
          Sempre gostei de cozinhar, mas nem sempre nos momentos em que os outros me querem na cozinha. A poesia esbracejava em um outro universo, impaciente que eu lhe desse autorização de se manifestar. ´´ Que coisa! A poesia também precisa ser paciente! Não? `` Ela segredou-me que não. Desabafou: ´´a espera aniquila-me``.
          Agora comam que eu vou escrever- senti vontade de dizer. Contive-me, sentei-me na mesa. A poesia brincou de rio dentro do meu copo de água e de jardim na jarra de flores. Nem me deixava mastigar. Nunca ansiei tanto que todos terminassem de comer. ´´ Ah, mas depois de todos satisfeitos, quem arruma os pratos sujos?``- pensei levantando-me.
         Os pratos tremiam de medo nas minhas mãos, Elas quase que os afundavam no pobre do caixote do lixo, que por sua vez quase se engasgava, tal era a velocidade e fúria com que o obrigava a engolir os restos de comida deixados pelos convidados. A poesia, essa coitada, já desaparecera. Ocupara o seu lugar, a desilusão, por eu mesma lhe ter feito o funeral.
          Horas depois... muitas depois... Após aquele período em que eu tentei deitar a cabeça na almofada e chamei, em vão, o sono . Ele decidira ficar de folga. Quatro horas a remexer-me na cama, imaginando a poesia a remexer-se no túmulo. Levantei-me, com todas as minhas forças, busquei a pá e decidi desenterrá-la. Não havia outro caminho. Quando a libertei, derramou-se em queixumes. Que poema triste ela escreveu! Mas depois de terminado, senti-me renovada. Que doce refrigério na minha alma! Poder desabafar num poema o que gostaria que os outros entendessem sem que eu falasse. 

          O mundo familiar é cheio de botões secretos. Alguns nunca chegam a ser acionados. O amor enferruja, constantemente na fechadura da porta. Por vezes espreita, quase pergunta se pode entrar, mas depois, encolhe-se; lá dentro o dever ocupa toda a casa. Uns esperam sentados, iguais a convidados que não conhecem os cantos da casa, que alguém cumpra o dever e esse alguém transpira, convencido que tem de dançar a valsa dos outros e de suportar o mundo no seu dorso.

     

Fernanda R-Mesquita

do livro ´´Exercício entre as diferenças``

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Comentários

  • Muito obrigado a todos!  Abraço fraterno!

  • A vida é fragmentada dentro dela temos que complementar em todos os sentidos, plenamente maravilhosos e reflexivo esse texto

  • Querida amiga, que você continue embolsando essa Luz Límpida para você escrever assunto desse estilo.

  • Maravilha! Junto-me a ti na opinião deste texto estupendo. Quantas famílias ainda vivem o massacre da mãe e fingem que não enxergam o cansaço que a envolve.

    Amei esse texto, Fernanda.

    Destacado!

  • Este eu vou aplaudir de pé! Bravíssimo!

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