Minha lenda sobre o pequizeiro

 Minha lenda sobre a origem do pequizeiro

 por J. A. Medeiros da Luz

Depois de anos de seca inclemente, com os seres humanos já desnutridos, o deus do milho Centeotle, emigrado do México para estas terras, não impede que as lavouras falhem. E por todas as tribos sob Guaraci, o deus sol, a fome vai grassando, e, com ela, as brigas, desavenças, e, mesmo, a degeneração da guerra.

Pequiuatã, um obscuro deus do panteão daquela tribo do Planalto Central, com seu corpo todo polvilhado de ouro, ouve o lamento dessa tribo e desce à terra dos chapadões, deslizando sobre as cores de um arco-íris, surgido após efêmera garoa. E promete ao povo terminar com a seca avassaladora.

O corpulento deus do milho, ao tomar disso conhecimento e irado pela intervenção daquele seu congênere, também desce à terra, e põe-se a  agredi-lo, terminando — depois de longa luta corporal — por matar Pequiuatã, inclusive arrancando-lhe os olhos, que calhavam ser de ouro.

Após o retorno do deus furibundo aos ares — para além das nuvens do poente ensanguentado pela luta — o povo da tribo, agradecido pela coragem demonstrada por aquela divindade humilde e cheia empatia, que por eles perdera a vida, prepara-lhe as últimas honrarias.

Banham o cadáver do deus nas águas espumarentas de uma cascata, ungem-no com óleo de copaíba e flores de cajueiro. Finalmente o enterram, dentro de uma bela urna cerâmica, com motivos geométricos de bela simetria, toda acolchoada de fibras de tucum, perfumadas com a essência das duríssimas amêndoas de muru-muru.

Eis que um curumim, naquela típica incansável procura por coisas e badulaques de interesse, encontra, amoitados ao acaso no capinzal, os dois olhos de Pequiuatã. Penalizado, apesar de muito tentado — por serem de ouro rutilante, sob a luz do deus sol, Guaraci — a guardá-los em um oco de sumaúma, para fazer deles brinquedo no futuro, acaba por enterrá-los, no meio do cerrado.

E naquela noite, a deusa lua, Jaci, esposa de Guaraci e protetora dos vegetais, condoída com tudo aquilo, já que Pequiuatã era seu amigo, derrama lágrimas de chuva fina. Assim ficaram regadas todas as veredas do cerrado, por onde passeiam de tempos em tempos — na busca do de-comer e assuntando as sombras para a evitação de onças-pintadas — as varas de porcos-do-mato, o tapir solitário, as famílias de capivaras, as esquivas e velozes preás.

Com poucos dias, no local, nascem e crescem, de modo milagroso, duas árvores de folhas grandes, coriáceas, ao fim de galhos contorcidos que se enchem de belíssimas flores, com os filetes dos estames, muito brancos, dispostos como um feixe de raios de luz a sair dum astro.

Ao serem polinizadas pelas abelhas jataí e mariposas da noite, essas flores geram frutos carnosos, que guardam no interior grandes bagas amarelas como os olhos de Pequiuatã, de sabor e aroma intenso e característico. O povo da tribo batizou esses frutos de pequis.

E, desse dia em diante, a tribo nunca mais passou penúria, pois os pequizeiros sempre se mantinham verdes, mesmo nos meses mais secos do ano, e ofertando, ao seu tempo e sem cobranças, sua doce polpa como alimento, os quais deviam ser consumidos com calma e com um ritualístico respeito.

Para aqueles afoitos, como Centeotle, o deus do milho, porém, tais frutos reservam uma vingança: uma compacta formação de espinhos a proteger o embrião; centenas de espinhos miúdos que se lhe enterrarão na língua, deixando dolorosíssima lembrança...

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • 3700906882?profile=RESIZE_400x

    • Agradecido pela gentileza do incentivo, cara Angélica. Abraço e muita saúde.

      j. a.

  • Pois é, Pessoal:

    O provavelmente derradeiro livro de poemas deste rabiscador de versos já está lambendo as rotativas. Cinco está de bom tamanho. Agora, experimentando uma como que "síndrome do ninho vazio" — tendo batido asas as crias, após alguns decênios de estase e latência na gaveta —, lanço meus olhos astigmáticos à prosa. Veja em primeira mão o esboço de um conto juvenil (?), talvez um tanto canhestro, mas uma pequena homenagem gastronômica a minha terra natal, de que emigrei há séculos...

    • Perguntado por um amigo sobre a gênese dos nomes neste pequeno conto, afirmei-lhe que, não sendo filólogo de tupi-guarani, arrisquei um nome de deus: Pequiuatã... Quanto aos demais, são nomes e seres da teogonia dos Astecas (Centeotl, que aportuguesei) e da cultura Tupi-Guarani.

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