O segredo

 

O SEGREDO

 

 

Miguel Carqueija

 

 

       Ao se aproximar da porta do quarto Lucília escutou o tropel dos pés de Joyce, ainda que pouco audível. Não era a primeira vez que percebia isso, mas ao abrir e entrar encontrou a menina ajoelhada, apoiada nos tornozelos, diante da banquetazinha de brinquedos. Ali estavam, enfileirados lado a lado, o soldadinho de chumbo, a dançarina, o Dumbo e os diversos monstrinhos e alienígenas.

       “Engraçado”, pensou a moça. “O que será que ela está aprontando e não quer que eu veja?”

       — Oi, Joyce. O que é que você está fazendo?

       — Estou passando a tropa em revista — disse a menina de oito anos. — Coloco todo mundo alinhadinho...

       Lucília olhou o alienígena de anteninhas e grandes bochechas, gordo como um Buda, que parecia de porcelana e tinha um olhar muito maroto.

       — Sempre acho tão engraçado esse que você ganhou da colega...

       — Ah, é... — e a menina sorriu amarelo.

       — Eu vim te chamar para lanchar, não está com fome?

       — Tou sim, eu já vou...

       — Não demore — e Lucília deu as costas e saiu do quarto.

       Joyce fez um ligeiro afago ao pequeno alienígena de louça, correu para a porta, escutou os passos da mãe se afastando e retornou para junto dos bonecos:

       — Foi por pouco, Itar. Eu vou ter que lanchar, você me espera, tá bem?

       — Não demore! Estou cansado de ficar sozinho!

       — Eu volto daqui a pouco!

       Ao deixar o quarto, Joyce não pôde deixar de pensar na sorte de seu amigo alienígena perdido na Terra: não se alimentava de sólidos, líquidos ou pastosos mas apenas de ar. O seu metabolismo dependia exclusivamente da expiração e da inspiração. Com isso, a sua manutenção ficava muito simples. E ele também podia disfarçar-se de inanimado, adquirir a textura da porcelana.

       Há quinze dias o uranídeo morava no quarto da criança. Ela o encontrara no jardim e, embora ele se fingisse de estátua, não pudera enganá-la; até porque Capiau, o gato vira-lata, xerimbabo da menina, o rebolara pela terra, desconfiadíssimo. Joyce pensara tratar-se de um gnomo caseiro e levara-o para o quarto, fazendo-lhe um ultimato:

       — Vamos, fale comigo, eu sei que você é vivo! Se não falar eu te entrego aos meus pais!

       Itar então falara, revelando sua origem num distante sistema solar, que a menina não tinha como identificar com seus conhecimentos infantis. Ela o protegera, fingindo tratar-se de uma estatuazinha, mas não pudera fazer mais nada: a nave que trouxera o visitante fôra obrigada a se evadir da Terra, acossada pela Força Aérea e com a fuselagem danificada. Antes de doze anos terrestres não poderiam voltar, explicara Itar tristemente.

       — Mas não tem outros de vocês? Tem tanto disco voador na atmosfera...

       — Não é tão simples assim, da minha raça era só aquela nave na Terra, e meu comunicador está inutilizado, por causa daquela fera que o mordeu...

       (Referia-se ao buldogue dos vizinhos)

       Naquela noite, depois de rezar pelos pais e pelo irmão mais velho, pelo Capiau e agora também pelo Itar, deitada sob a colcha, ela pôs-se a refletir, com seu cerebrozinho de oito anos, na imensa responsabilidade que pesava sobre todo o seu futuro: ocultar e proteger uma pessoa de outro mundo, obrigada a viver escondida no seu. Sua própria infância comprometida por aquela armadilha do destino. E adormeceu com a certeza de estar sendo uma menina boazinha.       

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Comentários

  • Belíssimo texto! Aplausos!

  • Um ecelente conto cheio de magia do começo ao fim, um enredo que prende o leitor.

    Aplausos, Miguel.

  • Belo conto, mágico, envolvente e bem escrito.

    Um abraço,

    Adriano

  • Parabéns, poeta, belísssima imaginação, primorosa criação...

    Abraços, paz e Luz!!!

  • Que bonito este conto! Traz a singeleza e a inocência infantil e a inclusão de um ser de outro mundo. Parabéns

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