ZEPERNINHA
Dele pouco ou quase nada se sabia. Sua origem era completamente desconhecida. Quem foram seus pais? Teria tido irmãos? Como vivera antes de por ali bater com os costados?
Vivia, ou melhor, sobrevivia como um agregado da fazenda localizada no sopé da serra de Maranguape. Era um simplório serviçal que habitava a periferia da casa, tendo como refúgio um quartinho junto ao galinheiro e ao chiqueiro das cabras. Com esses pequenos animais dividia o tempo. Eles eram, parecia-me, a razão de ser de sua existência. Deles cuidava com inesgotável paciência. Disciplinava as entradas e saídas de seus abrigos e providenciava para que não lhes faltasse o de comer e o de beber.
Além dos bichos, ainda cuidava da limpeza, de vassoura em punho, da grande copa localizada nos fundos da casa de fazenda, ao lado da ampla cozinha. Ali conviviam galinhas, patos, capotes, marrecos, perus e mais uma matilha de cachorros dos mais variados tipos e tamanhos. Mantinha com seus bichos uma relação promíscua. Tinha mais paz com eles, seus companheiros de vida e lida, que com as pessoas da fazenda.
As crianças compraziam-se em atazanar-lhe a paciência, espicaçando suas deformações físicas, seu grande complexo, um verdadeiro calvário.
Nascera desfigurado, ou, quem sabe, a vida assim o tornou, como ele vagamente explicava, talvez com o intuito de esconder malformações congênitas. Dizia ter sido uma queda de cavalo a responsável pela visível deformação apresentada por suas pernas, arqueadas como arcos de barrica, constantemente protegidas, em seu terço inferior, por bandagens de tecido roto, sujo, usado e reusado, trapos oriundos de roupas velhas obsequiadas pela caridade das pessoas.
Sua desfiguração não era limitada às pernas cambotas. Tinha a estatura pequena, de um quase anão, agravada pelo encurvamento das pernas que mais reduzia-lhe a estatura, resultante de uma combinação de membros curtos e de um reduzido tronco.
Circulava desnudo da cintura para cima, revelando mais uma faceta de sua deformação física: o peito de pombo, formando uma quilha à altura do esterno. Ao falar, resfolegava como se padecesse de um cansaço crônico. Sua arquejante respiração era acompanhada por movimentos exagerados, perceptíveis, de seu acunheado peito. Era um todo pequeno, torto e feio. Sua feiura física era, entretanto, ainda mais acentuada na face. Ali talvez estivesse reunido um conjunto atroz: a deformação física combinada com o olhar opaco, triste, vago, distante, como que em busca de um horizonte nunca atingido, expressando desalento e desamparo, reflexos de uma existência de padecimentos.
Se sua presença física já por si constituía um fenômeno teratológico quando silente, a percepção de que a natureza tinha se esmerado em concentrar mais feiura era revelada por sua voz, rouca, anasalada, com sons ora estridentes ora guturais. Os sons emitidos, associados com o resfolegar de sua difícil respiração, revelavam-se quase ininteligíveis.
Sua figura ainda está muito viva em minha memória. Retorno ao passado e vejo, com os olhos de criança, seu Zeperninha, era assim que o chamávamos, a caminhar da casa grande para o seu quartinho junto dos bichos, na boca da noite, após ter cumprido sua jornada de labuta, com uma lamparina acesa sobre a cabeça, para alumiar o caminho, a emitir cânticos religiosos, dos crentes, onde certamente buscara amparo espiritual, com sua voz cavernosa, de fantasma de outro mundo, talvez ele assim se considerasse, uma alma de outro mundo, de um mundo só seu, diferente do das pessoas comuns. Era nessa hora que o grotesco de sua feiura se estereotipava ainda mais. As crianças faziam algazarra, riam, xingavam, divertiam-se com o ridículo que aos seus olhos a figura do Zeperninha representava.
Tempos difíceis vieram para os donos da fazenda. O crescimento da família foi acompanhado pelo aumento das despesas e das dívidas. Foram, em conseqüência, forçados a vender a fazenda e transferir-se para a capital. Um caso típico do empobrecimento da aristocracia rural. Perdi, desde então, o contato com o personagem de minha infância. Hoje, passados muitos anos, me pergunto: que fim teria levado o seu Zeperninha? Talvez tenha terminado os seus simplórios dias na mesma fazenda, com novo dono e patrão. Talvez tenha mudado para uma outra e continuado a sina de divertir a criançada e servir de escárnio aos adultos. Talvez tenha recorrido à mendicância . Talvez...quem sabe.
Quando criança via nele uma deformação da vida. Hoje já maduro, vejo-o diferente, com outros olhos. Procuro imaginar como teria sido sua alma. Será que atormentada e revoltada com os desígnios da Providência que o fizera tão feio, por fora? Será que, ao contrário, tinha paz interior, ao preencher a vida com o cuidar de seus bichos? Teria ele permanecido casto por toda a vida? Em sua existência teria aparecido uma mulher para, por amor, caridade ou dinheiro saciar-lhe a fome de fêmea que lhe era lícito ter? Com aquela deformação, e mais a pobreza franciscana em que vivia, pois trabalhava como escravo, em troca de abrigo e comida, dificilmente teria tido sucesso neste mister. Quem sabe, não teria recorrido à colaboração involuntária das fêmeas dos bichos que cuidava? Estaria completada assim a relação promíscua que com eles repartia seu dia a dia.
Ao contrário, poderia ter tido uma vida de asceta. Relembro agora que era crente e frequentava os cultos com regularidade. Talvez Deus tenha tido na sua infinita misericórdia o cuidado de colocar um espírito superior naquele corpo repugnante. Em seu mundo, pequeno, talvez se sentisse plenamente feliz. Era, na verdade, um ser quase primitivo, transplantado para um mundo civilizado e cruel. Ali, em seu quartinho, achava-se protegido do mundo. Imagino agora como a venda da fazenda e a substituição dos donos e conhecidos deve ter sido atroz para ele.
Hoje a figura do Zeperninha afigura-se para mim como um mistério. Prefiro eterniza-lo em minhas lembranças, para que ele se torne perene, infinito, sem começo ou fim, e confunda-se com o seu Criador.
F.J.TÁVORA