9 semanas de ficção

                                  PARTE I

 

                            Azul da cor do mar

 

          Era uma vez um jovem desiludido de nome Canun, que encontrou um velho sentado sozinho ao banco da praça e forçou um diálogo, pois precisava desabafar com alguém para expor a sua indignação.

          - Posso sentar ao seu lado?

          - Claro! – respondeu o velho afastando-se um pouco para aumentar o espaço para o jovem sentar-se à vontade.

          Ao iniciar o diálogo, Canun fez algumas perguntas sobre a vida do velho, e este, percebendo que o jovem estava falando com indignação, perguntou:                                                                                               

          - Por que estás revoltado?

          - Um pouco, pois eu tinha uma namorada que era tudo para mim. – Cabisbaixo, ficou esperando o comentário do   velho,  mas  ele se   limitou  a   ficar   em                                                                                        silêncio.

          Canun levantou a cabeça e continuou falando de sua ex-namorada:

          - Era uma moça exemplar, tipo executivo, tinha uma boa educação, tinha classe, elegância e era muito bonita...

          - Meu filho, acorde! Ela era quase perfeita, mas não te pertencia. Se fosse mesmo tua, não ia embora, não te deixava sozinho. Eu também já perdi uma fêmea, a minha maior paixão. Morreu a minha companheira e eu ainda a amo. Ela era como uma sombra protetora. Quando não estava ao meu lado direito, com certeza estava do outro lado, mas mão me deixava só. Não era forte, mas dividia comigo todo peso, até mesmo o peso da consciência. Quando fiquei cego, ela latiu como se estivesse oferecendo os olhos dela para eu ver. Talvez por isso eu quase não senti falta da visão, porque ela  me  guiava  para  o  caminho  do  bem.  Hoje,   ando   sozinho

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porque ela me  ensinou tanto, que agora já decorei cada buraco e sei exatamente quando devo dobrar o canto da rua, e até aprendi  a  atravessar  a  ponte  sozinho.  Ela  também  me                                                                                         ensinou a lidar com animal feroz...

          - Como?

          - Com carinho! Tratando-o como se eu fosse íntimo. Todo animal tem o coração frágil. Até mesmo os racionais. Um gesto de carinho é o suficiente para domá-lo. Ela me fez acreditar que o cachorro mais bravo é sempre o mais carente. Atirar uma pedra não é a forma correta, pois todo bicho aceita a atitude cordial e torna-se o seu melhor amigo. Basta você conhecer o limite dele.

          - O senhor tem um cachorro?

          - Não, mas tive Madaugon, uma cadela bonita e inteligente.

          - O que significa “madaugon”?

          - No idioma Cebuano quer dizer: vitoriosa. Isso      mesmo, uma vitoriosa, o que a minha cadela era...                                                                                                                            

          - Foi ela a fêmea que o senhor perdeu?

          - Sim. Meu maior amor, pois fui abandonado por todos os humanos que fazem parte da minha família.  Ela,                                                                                          a cadela, foi a única a permanecer comigo até morrer. Agora, sim, me sinto sozinho, sem esperança, sem enxergar, e posso dizer que aprendi a amar. No entanto, quem sofre, assim como eu, não pode se entregar. Enquanto vida eu tiver, vou agradecer à minha cadela Madaugon, que foi fiel comigo sempre. Ela foi a razão do meu viver, pois depois que fui esquecido com requintes de sentimento cruel, porque tive esposa que disse que ia fazer uma viagem de férias e nunca mais voltou; filhos que foram cuidar da vida deles, prometendo aparecer uma vez por semana, e não se fizeram presentes nem nas datas comemorativas. Os meus netos telefonam constantemente, mas nunca vieram me ver, e os bisnetos são pequenos demais. Enfim, era para eu ter toda a assistência familiar de que um cego precisa para afastar a doída tristeza, pois a solidão machuca o coração, principalmente vivendo na treva.

          - E os amigos? – perguntou o jovem Canun.                                                                                    

        - Estou esperando até hoje...

          Houve um instante de silêncio e Canun ficou procurando um assunto novo para descontrair:                                                                                        

          - Fale dos seus sonhos...

          - Aprender a nadar era um sonho antigo, e foi ela quem me ajudou a realizar, pois depois que fiquei cego, aprendi a nadar porque fui incentivado pela cadela. Tivemos que atravessar um rio para fugirmos de uns pivetes que fecharam o acesso pela ponte para tomar pedágio.

          - O senhor quis dizer, cobrar?

          - Não! Tomar mesmo. Foi assim que ouvi as pessoas falando. Naquele dia estávamos voltando do banco, onde fomos nos encontrar com o meu procurador. Ele recebeu o valor de minha aposentadoria, pagou as minhas contas e me deu o restante. Ela ficava na porta do banco me aguardando e todo mês íamos comprar remédio de uso contínuo. Na farmácia, Madaugon tinha autorização para entrar. Era tratada como humano. Entrava e ficava ao lado da prateleira onde era estocado o meu remédio. Ficava ali até o vendedor me atender.  Foi  na  volta  que  não  podíamos  passar pela ponte

porque eu tinha que    entregar   todo    o   meu   dinheiro.   A   solução  foi atravessar o rio a nado. Entrei com braçadas rápidas e a cachorra latia tentando cadenciar o ritmo. Demorei a entender, mas quando nadei obedecendo à orientação do latido,  percebi  que  fiquei mais leve, que podia também boiar, que eu não era tão pesado como aparentava. Foi uma competição de respeito, pois nadei como um aprendiz de um coral regido por um maestro inteligente. Logo chegamos do outro lado da margem sãos e salvos, mas molhou tudo. Chegamos molhados, mas chegamos com a mesma satisfação de um soldado que retorna da guerra. Naquele dia, fui direto ao banheiro, mas antes de começar a tomar banho, a cachorra ficou arranhando a porta do banheiro. Aquilo era novidade, pois ela usava sempre o latido para chamar a atenção. Abri a porta e procurei acalmá-la, e foi neste momento que percebi que ela estava tentando me entregar a toalha presa nos dentes, pois eu tinha me esquecido de levar a toalha ao banheiro. Por isso não latiu. Peguei a toalha, agradeci e finalmente fui tomar o meu banho sossegado.

          -  Senhor!  Essa   amizade,   com   tanto   carinho, não despertou comentários maliciosos sobre o senhor e a cachorra?

          - Pelo menos não chegou ao meu conhecimento, mas  com  certeza  eu  não  ia  ligar  porque  entre eu e  ela houve um amor identificado como platônico. Aquele amor sem malícia. E você, qual o sonho que não realizou? – perguntou o velho tentando mudar de assunto.                                                                                       

          - O meu é ser campeão olímpico de natação!

          - Não precisa ser necessariamente campeão. Primeiro, tem que treinar em uma piscina com água azul para se preparar para a competição...

          - Por que com água azul?

          - Porque quando tudo está bem, dizemos que está tudo azul e tudo é maravilhoso quando o azul é da cor do mar...        

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Roger Dageerre

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