Volume 3
PARTE IV
Cara de palhaço
Era uma vez um homem de nome José apaixonado por carnaval e que se especializou em recuperar fantasias carnavalescas. Ele desmontava os enfeites para reaproveitá-los no carnaval do ano seguinte. José usava bem a criatividade, pois os enfeites velhos eram reciclados com tanta perfeição que pareciam novos. Trabalhava assim há muito tempo e, apesar de fazer tudo sozinho, nunca deixou o serviço atrasar. Ficava trabalhando até tarde da noite, acordava cedo, mas ficava deitado demonstrando cansaço. E quando levantava, ia logo dar sequência no trabalho de reciclagem, mas, mesmo fazendo o seu serviço de pé, conseguia cochilar.
Naquele dia, o temp estava nublado e o sol demorou a aparecer, prometendo um dia de chuva. Isso preocupava demais porque ele precisava de bastante espaço para trabalhar, de preferência ao ar livre.
Sua vizinha e admiradora Carmem aproximou-se e perguntou:
- Não percebeu que vai chover?
- Aposto que não vai. – respondeu José sem interromper o trabalho.
- Ao invés de apostar, é melhor prevenir. Vamos carregar as fantasias de volta ao galpão?
José continuou com os serviços como se não estivesse ouvindo-a, mas ela insistiu:
- Vamos, José! Vai chover. Você parece que está dormindo.
Enquanto carregavam as fantasias, ele comentou:
- Eu vivo com sono. Quando não estou dormindo acordado, estou esperando o sol raiar, e às vezes o sol não aparece, como se o tempo estivesse nublado o dia todo.
- Acredito que você está acordando cedo demais...
- Como diz o velho ditado: “quem cedo madruga, Deus ajuda” – disse José.
- Quem acredita nesse ditado é porque anda com fé. – completou Carmem.
- Mesmo assim, o dia insiste em nascer para mostrar que o ontem acabou e para exibir o hoje cheio de esperanças, e depois deitar-se ao final da tarde para liberar a treva. Assim, a aurora e o pôr do sol mantêm viva a rotina da existência garantindo sempre um novo dia.
- Como dizia um filósofo maluco: “quem muito dorme, pouco vê”.
Um ditado que não combinava com José porque dormia pouco e enxergava muito bem. A visão dele era perfeita; isso contribuía bastante, principalmente na hora de enfiar a linha na agulha fina para fazer os arremates mais delicados. O maior problema era porque estava eternamente com sono porque dormia muito tarde. O serviço que José executava era para ser um trabalho de equipe, mas ele preferia fazer tudo sozinho porque não tinha paciência para ensinar, e a maioria das vezes tinha que esperar a definição do samba enredo. Por isso, tinha que deixar o acabamento para quando estivesse próximo do carnaval, mas isso não o impedia de trabalhar.
Antes de se retirar, Carmem perguntou:
- Se eu fosse participar do próximo carnaval, como seria a minha fantasia?
- Seria uma brincadeira de ser feliz. – respondeu sem pensar.
- E como seria a tua?
- Um monólogo! Escolheria uma roupa folgada, estampada, sapatos imensos de bico fino, chapéu coco e pintaria o meu nariz assim. – E começou a se pintar, apesar dela dizer que não precisava. Só perguntou por curiosidade, mas José continuou o diálogo enquanto se vestia de palhaço.
Horas depois, José já estava um verdadeiro palhaço; o nariz pintado de vermelho e uma simulação de lágrimas escorrendo.
O que mais impressionou Carmem foi a mistura da tinta que ele usou para imitar o tom da cor da lágrima. Depois, pegou um tarol e fez a percussão e, em seguida, abandonou-o e começou a cantar um refrão dizendo que a música era para levantar o bloco, porque toda escolha é feita por quem acorda e não levanta, ficando deitado, apesar de acordado, como uma pessoa que dormiu pouco.
- Diga-me, o que mais te inspira a fazer o teu trabalho? – perguntou Carmem.
- Uma pétala de uma flor ou uma folha de uma planta que elege uma pessoa que mora ao meu lado, assim como você, a estrela maior da escola que se junta às demais para pintar o estandarte de azul e pôr as estrelas no azul do céu.
- Isso não muda?
- Para que mudar? O carnaval é a alegria do povo. Eu também brinco de ser feliz. Por isso, pinto o meu nariz.
- Até quando?
- Só hoje! Amanhã virá outro e mais tantos profissionais dedicados e fanáticos por carnaval...
- Então, você não vai mais trabalhar?
- Aqui, não!
- Por quê?
- Porque tudo tem limite. Nada é para sempre, nem mesmo a emoção, porque tudo que é feito com carinho e dedicação termina deixando saudade. E com o carnaval não é diferente. Toda euforia do carnavalesco é como uma cara de palhaço, que se apresenta com alegria, mas costuma se esconder com vontade de chorar...
Roger Dageerre.
Comentários
Ninguém é insubistituível, e a grande verdade é que as coisas feitas com amor e dedicação e que fazem as outras pessoas felizes, deixam saudade, sim.
Aplausos, mais uma vez.
Bela Composição. Parabéns!