Ácaro

Ácaro

 J. A. Medeiros da Luz

 

 Através de trilheiros de silvas ressequidas,

No carrascal espinhento dessas dúvidas

Que nos permeiam, suscitando-nos aquele

Reperguntar insano sobre as causas,

Nós, em nossa pequenez insética, aracnídea,

Súbito, num perpasso,

Roçando-nos a vida os seus flancos,

Saltamos para a grande caminhada!

 

E cá nos vamos a carrapatear a vida,

Sofregamente, a mordendo e sugando,

Parasitos com nossas diminutas

Ventosas e garras e quelíceras.

 

Eis que, em resposta a nós, seu corpanzil,

Defendido por pelagem de tapir, de guzerá

— Imune a mil espículas, a mil espinhos, a mil estrepes,  

E aos farpados arames das divisas —,

Fazendo pouquíssimo caso

De nossa despudorada intrepidez,

Marcha para frente, invulnerado

(Mas, teimosamente, a gente persevera),

E  nos translada, à nossa ­revelia,

Para onde bem entende.

 

Até que, integradas, contabilizadas todas

As nossas depauperadas finitudes,

Empanturrados nós outros de existir, e a querer mais,

Já o vigor evanescendo da musculatura

— Ginastas exauridos das forças do agarrar —,

Desprendemo-nos, por fim,

Daquela epiderme, resistente e migradora,

De tapir cósmico e nos despencamos

Na queda abismal, tornando-nos

Bólidos imersos nas incertezas que medeiam

Entre esta alma pelagem nutridora

E soturnas penumbras que lá nos esperam,

Junto àquela gelidez cadavérica,

Do saibro sanguíneo e incógnito final.

 

 

 

Ouro Preto, 24 de outubro de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • Parabéns. Gostei imensamente do que li.

    Um abraço

    • Cara Márcia: 

      Obrigado pela visita e pelas palavras generosas.  Isso de escolha de temas para versificação é um tanto singular. Há alguns, em tese, pouco afeitos ao carreamento de mensagens líricas. Entretanto, quando nos lembramos de poemas belos como aquele de nossa Cecília Meireles, tratando do cadáver de um cavalo, apodrecendo à borda da estrada, sentimos que temas abstrusos podem ser um toco de árvore atirado ao canto; que se transmuda em bela escultura, exibindo expressivamente seus anéis e marmoreados de lignina, após o serviço do cinzel e das goivas do artista.

      Nessa linha, o proceder imperioso dos carrapatos jovens a se postarem, em grupo, à espreita, em gravetos de ervas, à altura das ilhargas dos quadrúpedes (e também — ai de nós — de certos bípedes), esperando a oportunidade de parasitar os mesmos, não parece nada poético, ou suscitador de poesia… Ao cogitar casualmente sobre isso, raiou-me na caixola, a troco de nada, a analogia, a qual acabei por transformar na argamassa da essência deste poema. 

      Eis, pois, Cara Márcia, a gênese desse poema, um tanto pelejadinho na melodia, algo tatibitate,  mas — quero crer — capaz de,  ao fim e ao cabo, emitir o seu recado ao raro leitor que, por acaso ou camaradagem, com ele tope nesse ciberespaço de dimensões imoderadas…

      Abraço do j. a.

       

  • Pessoal:

    Senti a necessidade de um comento esclarecedor.

    A despeito do que pareça, isto que aí em cima vai não é um poema negativista, ou sorumbático. É tão somente constatação serena — vá lá: com duas pitadinhas de ironia! — desta saga humana, aventuresca jornada da existência, no lombo e nas ilhargas na vida. Que afinal, mercê de condição, acaba por se extinguir. Melhor me expressando: nós é que nos extinguiremos e a vida há de continuar. E nada mais justo, que outras instâncias e outras entidades carecem também de ter sua oportunidade de vivenciar a inspiradora caminhada.

    A mensagem embutida nesta minha particular visão da pulga humana é esta: neste nosso breve esvoaçar pela várzea do existir, gozemos a oportunidade, nutramo-nos da seiva embriagadora da vida, serenamente embora, para que partamos (quando tiver que ser) plenos da sensação de que não abusamos, afinal, da hospitalidade desse hospedeiro cósmico. Com a convicção de que, então, haveremos de ter sido somente seus inquilinos, seus comensais — e não seus parasitos.

    Abraço deste tropeiro virtual, neste 24 de outubro, em que comemoramos 88 anos de metabolismo urbano de Goiânia, minha hoje — geograficamente — distante capital.

     

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