Inocente

Inocente

 

Sandra, ao saber a sós com Carlos no escritório onde ambos trabalhavam, correu a trancar a porta, olhou-o bem nos olhos e, insinuando-se, disse-lhe daquele jeito que o deixava completamente dependente das suas vontades:

- Ama-me, possui-me. Hoje quero entregar-me toda a ti e sentir-te todo meu.

Carlos ainda pensou demovê-la de tal ideia, não porque não a desejasse tanto como ela o desejava a ele, mas sim por medo que algum dos colegas de trabalho pudesse voltar atrás e surpreende-los, mas a visão do corpo que já se começava a livrar das roupas que o cobriam, impediu-o de dizer fosse o que fosse.

Há muito que Sandra e Carlos se amavam em segredo, sem que conseguissem ganhar coragem para darem o passo decisivo e assumirem o sentimento que os unia e que nenhum dos dois sabia definir com precisão. Seria amor, pura atracção física ou simples desejo sexual?

Saciados os desejos, decidiram ir cada um ao seu destino, ele ao encontro dos amigos de copos e ela rumo a casa.

Carlos, mal chegou ao bar onde se costumava reunir com aquele velho grupo de amigos, não conseguiu esconder o brilho de felicidade que lhe ia nos olhos, o que motivou logo alguns comentários. “Pronto, lá tiveste de papar mais alguma coleguinha de trabalho, não é verdade?”

Enquanto isso, Sandra, ao entrar em casa, apercebeu-se que algo de estranho se passava com Jorge, o marido, mas não deu grande importância ao caso, pensando tratar-se do resultado de mais um dia em que bebera demais, o que até era prática corrente, pelo que desligou e foi preparar o jantar.

Foi quando ambos se deitavam, pura coincidência, Carlos com Lisete, sua companheira de vários anos, e Sandra com Jorge, que este lhe disse:

- Espero que o teu amante não te tenha deixado demasiado cansada, pois hoje tens de me dar tudo, tal qual como lhe deste a ele.

Sandra não queria acreditar no que ouvia. Então era isso, Jorge descobrira que ela e Carlos eram amantes:

- O que é que estás para aí a dizer? Amante, mas qual amante? Tu sim, tu é que deves ter montes de amantes, por isso não me satisfazes como é tua obrigação de marido. Fica sabendo que não tenho amante nenhum, mas mesmo que o tivesse, a culpa seria unicamente tua por não me satisfazeres os meus desejos próprios de uma mulher na força da sua sexualidade.

Jorge, sem lhe responder, levantou-se e foi buscar um pequeno gravador que logo colocou em funcionamento. Não havia margens para dúvidas, a voz de Sandra, tal como a de Carlos, era nítida.

Então era isso, o marido colocara-a, sem ela saber como, sob escuta:

- Será que ainda tens coragem de continuar a negar?

Sandra não lhe respondeu, nem valia a pena, limitando-se a baixar o olhar:

- Então, agora a escolha é tua. Ou vais fazer queixa dele, dizer que ele te violou, ou amanhã vou ao escritório contar tudo quanto sei e das duas uma, ou o teu patrão arrisca expor-se aos olhos de todos, talvez aproveitando para também te saltar para cima, se é que já não o anda a fazer, ou corre com vocês dois, mas de uma coisa te garanto, o teu querido amante é que tem os dias contados. Se quiseres aceitar a minha proposta, estou disposto a esquecer tudo, perdoar-te e continuar com a nossa vida como se nada se tivesse passado.

Sandra nem conseguia discernir o que é que lhe custava mais, sentir-se descoberta ou a proposta do marido. Jorge prometia-lhe esquecer toda a sua traição a troco de ela ir acusar Carlos. Deixou-se ficar, calada, de olhar cravado no vazio:

- Quero uma resposta aqui e agora. Ou telefonamos à polícia, ou já nem me deito a teu lado.

Sandra estava desorientada, por um lado não tinha o direito de destruir a vida de Carlos só para salvar a sua reputação, pois que o casamento pouco lhe interessava salvar, mas por lado temia o que Jorge pudesse vir a fazer, talvez conseguir que a despedissem e depois abandoná-la. Tentou jogar a última cartada:

- Jorge, se queres que eu o denuncie de me ter violado, não achas melhor que o faça com provas?

- Como assim?

Sandra, numa tentativa de conseguir ganhar algum tempo, não hesitou em se rebaixar e lhe propor esperarem que ela e Carlos se voltassem a encontrar para então sim, recolher provas e denunciá-lo. Jorge, ao contrário do que ela temia, concordou em que ela se voltasse a entregar a Carlos e não houvesse hipóteses dele poder negar:

- Ok, até acho boa ideia, afinal de contas, de cabrão já não passo e, assim, ele não se fica a rir de mim.. Mas atenção, se me tentares enganar, nem sabes o que os espera aos dois.

Sandra conhecia bem os maus fígados do marido, pelo que enganá-lo era algo que nem lhe passava pela cabeça, talvez a solução fosse fugir para longe dele. Mas para onde iria?

No dia seguinte chamou Carlos à parte e disse-lhe que tinha estado a pensar e que se ele assim o quisesse, estava na disposição de largar tudo e fugir com ele:

- Calma. Não podemos fazer as coisas assim.

Sandra sentiu cair-lhe o resto mundo em cima. Nessa mesma tarde conseguiu reter Carlos e levá-lo a cair na armadilha preparada por Jorge e de que ela era cúmplice.

Carlos ficou atónito ao ouvir a condenação que lhe acabava de ser atribuída, sete anos de cadeia.

Quase seis anos depois, Carlos é chamado à presença da sua técnica no Estabelecimento Prisional onde cumpre pena. Se em todos estes anos, nunca lhe conseguiu obter uma única autorização para ir a casa, sempre com o argumento, “Risco de voltar a cometer o mesmo crime”, que seria que ela lhe queria agora?

A referida técnica encontra-se acompanhada do responsável jurídico do Estabelecimento Prisional. A notícia apanha-o tanto de surpresa como a notificação de que era arguido num processo de violação:

- É como lhe digo, a sua amante confessou que o acusou por pressão do marido, agora que ele morreu e ela deixou de viver sob as ameaças dele, resolveu contar toda a verdade. Pode ir arrumar as suas coisas, irá em liberdade ainda hoje.

Sandra, quando, à porta do Estabelecimento Prisional, vê Carlos e Lisete beijarem-se apaixonadamente, não consegue evitar que as lágrimas lhe escorram rosto abaixo, embora consiga interpretar o gesto que ele lhe faz com a mão atrás das costas. “Perdoo-te tudo o que me fizeste passar se aceitares voltar a ser minha amante.”

Sandra, além de não conseguir identificar a verdadeira razão das suas próprias lágrimas, se arrependimento por o ter acusado, ou dor provocada por isso mesmo, preterida em favor de Lisete, mas de uma coisa tem a certeza, ele nunca será só daquela sonsa que sempre acreditou nele, terá de repartir com ela.

Inocente no meio de todo aquele jogo, só, mesmo, Lisete.

 

Moral: “Quando a farinha é toda igual, basta estragar-se só um saco.”

 

Francis D’Homem Martinho

18/02/2020

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