Jornada onírica
— J. A. Medeiros da Luz
Neste sonho neblinoso que me ocorre
Transporto-me adiante duma cena,
Algo cubista eu diria, ladrilhada
De magentas, ocre, terra de siena,
Envolvendo o humano sentado em seu aprumo,
De chapéu preto combinado
Com seu fato negro e a gravata
A mimetizar negra borboleta
Pousada sobre a alvura da gola justo
Sob o pomo de adão daquele utente.
E uns olhos guarnecidos de lentes hialinas,
Perscrutadores de brumas, devaneios,
Para além do bigodito burocrático e curtido
Do fumo a efluir do cigarrinho aceso,
Brincante entre indicador e médio.
Há folha de papel e caneta-tinteiro
Soltas sobre a mesa, em contraponto
A exemplares empilhados da fugaz
Revista Orpheu (que o Senhor a tenha)
E mais a chávena de café à frente.
Deus meu! Agora vejo claramente:
Eis que fui transportado por magia
Ao escritório, ao bar — ateliê poético —
Daquele titã lusófono e magrelo,
Pleno, pleno de sortilégios,
Que atendia aos apelos de Calíope e de Orate
(Musas do verso e um tanto inatingíveis)
Por ortônimo e por muitos
Muito enigmáticos heterônimos.
Ouro Preto, 2025 – junho, 26.
[© J. A. M. Luz]
Comentários
Parabéns por lindo texto poético em vocabulário muito culto.
Depreende -se de caracterizar algum personagem de origem portuguesa, em ações e menções metafóricas.
Sim, Fernando Pessoa usava heterônimos para quando queria escrever em vocabulário comum e outro heterônimo para vocabulário culto.
Também sou um leitor de Florbela Espanca, uma Poetisa maravilhosa , para muitos a maior Poetisa e Escritora portuguesa..
Eu sou adepto de Fernando Pessoa..Muitas vezes leio algo dele que sempre me inspira.
Me parece que seu personagem lusofono, é bastante personalizado com uma personalidade de costumes comuns do cotidiano.
Parabéns pelo texto... Chequei no dicionário todas as palavras novas de seu texto de excelência, Prezado Poeta JAM da Luz
Abraços Fraternos prezado Poeta
Companheiros:
Estando a compulsar, solitariamente, velhas revistas da Coleção Abril Vestibular (de 1974, a qual encadernei em 1985), naquela reincidente jornada de lembranças de dias primaveris, eis que me deparo, na secção de escolas literárias, com o retrato famoso de F. Pessoa, materializado pelos pincéis incisivos de Almada Negreiros, naquela segunda versão — especular — de 1964, atendendo a solicitação da Fundação Calouste Gulbenkian (a primeira versão, para o restaurante dos Irmãos Unidos é de 1954, ponto de encontro dos modernistas lisboetas).
Ato contínuo, pus-me a elucubrar sobre as tertúlias de então, sobre nomes peninsulares daqueles tempos, como os de Pessoa, Mário de Sá Carneiro, Cesário Verde, Florbela Espanca... Pronto: foi o bastante para versos irrequietos pipocarem e ricochetearem nas paredes do encéfalo! Em três minutos mentalizei uns cinco poemas alucinados, os quais, muito provavelmente, nunca escaparão do limbo em que foram gestados. Sentei-me à escrivaninha e rabisquei (efetivamente com caneta esferográfica, que pouquíssimo uso, hoje em dia) a contida, mas pessoal, descrição da eloquennte tela do Almada, que vai digitada aí em cima.
Para dar uma envernizada, remetendo àquelas longitudes e latitudes, salpiquei umas poucas palavras de uso típico do português europeu, como fumo (preferimos, no Brasil, fumaça), chávena, utente, fato (o nosso terno)...
Em tempo: E para poupar, do eventual leitor, fosfatos, ácido gamaminobutírico e outros neurotransportadores de sinais ligados à memória (a qual já me anda escasseando), ponho abaixo a citada obra do Almada Negreiros.
Abraço do J. A.