Lembranças de uma debutante
Hoje acordei em transe, talvez fosse a arrebatada euforia dos 15 anos que chegava relutante diante da incerteza da perda de minha indelével infância ainda tão presente. Meus olhos circundam minha órbita ocular e demoram a se acostumar com a luz invasiva do sol em meu quarto. Pisquei algumas vezes até conseguir definir as cortinas que bailam com a brisa fresca do mar.
A festa de debutante já aguarda por minha chegada e os preparativos estão a mil por hora. Tomei uma ducha demorada onde a água tentava, em vão, acalmar meus sentimentos desvalidos. O tempo urgiu a galopes apressados e quando menos se esperava a hora já era alta e logo se iniciaria o ritual de passagem.
Minha mãe a passos lentos adentra em meu antes infantil quarto, parecia uma boneca russa em seu traje demasiado colorido de gala. Seus olhos brilhavam de emoção pelo baile que sonhara a longos e extensos tempos.
– Bom dia, minha princesa! Tudo pronto para o Grand debut!! Disse a mãe com voz empolada.
– Não vejo a hora de começar! Respondo na mesma melodia.
Meus vestidos permaneciam inertes, pendurados em seus cabides, como a espreitar e esperar a hora em que seriam vestidos e fulgurariam durante o evento.
Coloquei meu primeiro vestido cor de esmeralda, sugerindo que uma nova etapa de esperança surgia, meus cabelos encaracolados brincavam num coque adornados de esmeraldas saltitantes e brilhantes, o que contrastava com a cor de mel de meus olhos.
Ouvi meu pai chegar com um pequeno buquê de rosas brancas que denotavam a pureza da infância que ficaria em minha lembrança. Uma lágrima sorrateira teimava em querer cair de seus olhos negros. Mas ele a conteve a tempo. Estava elegante em seu terno preto. Um autêntico rei nórdico com sua aparência imponente.
– Como vai minha pequena? Pergunta com a emoção a sufocar.
– Bastante ansiosa querido papai! Respondo, dando-lhe um beijo nas bochechas rosadas.
Sigo pelo corredor iluminado por castiçais de anjos rumo a escada delicadamente decorada com flores em diversas cores que brincava com o arco-íris das cortinas de tecido leve e bordados de ouro. Olhei em volta como em fuga! Para onde iria? Talvez criasse asas e voaria através dos vitrais.
No salão, fantasiados convidados me esperavam num misto de tédio e curiosidade. Seus rostos pareciam figuras tiradas de um conto de fadas e a imagem de um baile medieval me veio à mente enquanto descia os degraus ornados pelo tapete branco como marfim. Todos estavam elegantes em seus trajes que pareciam tirados de um baú do tempo onde as cores se misturavam com os brilhos e paetês. Senti um leve cheiro de naftalina, colônia de barba e laquê de cabelo.
– Que beleza descomunal! Murmura uma voz com pitada de inveja aqui.
– Muito bela! Diz outra ali.
Parei no centro do salão decorado com prismas que faziam com que as luzes dançassem com as nuances da claridade criando sombras bruxuleantes na parede. Um a um os convidados se aproximavam e me cumprimentavam como servos apalermados diante da realeza.
Esse ritual durou uma hora eterna em que rostos iam e vinham sem nenhuma expressão, ou melhor, uma única expressão: um sorriso congelado na face imposto pelo protocolo burlesco de agradar à filha do rei. Mais um pouco e não conseguiria fazer voltar ao normal meus lábios rosados e doloridos.
Ao fim desse desfile aparvalhado retorno para o agora camarim que fora montado com tecidos de seda bege e almofadas douradas onde meu próximo vestido, de um rosa grapê derivado das uvas do reino do Norte, em seda finíssima que ao toque se debulhava em cordéis entrelaçados, ornado de pérolas alvíssimas e bordados de prata que terminavam em uma calda que remontava as cachoeiras do reino e que faziam com que os sapatos de cristal se destacassem em meio ao farfalhar de tecidos, me aguardava pacientemente. A tiara, que tentava segurar meus cabelos agora presos em rabo de cavalo cuja crina se desatavam em caracóis sedosos, era de uma requintada e rebuscada beleza, encravada de pequenos diamantes que luziam em contraste com o rubor de minha face.
Ao adentrar no salão me vi envolta em braços arqueados que formavam um corredor de vestidos emplumados e brancos que me conduziria até o centro onde meu pai aguardava para a tão ensaiada valsa vienense.
A música aos poucos contagia meus poros e me vejo conduzida por um salão de sonhos e quase ao fim vejo, por entre brumas de fumaça, meu príncipe se aproximar. Sinto a relutância indisfarçável de meu pai que sabia que ao entregar-me ao príncipe para que continuasse a valsa, ali estaria finalizando minha infância e tomando ciência de que agora não seria mais sua menininha.
Tudo foi tão célere e ao mesmo tempo tão indolente que a transição me afetou de modo que sabia que não havia retorno. Tudo seria como um futuro incerto onde os sentimentos mesclariam em meu ser entre inocência e malícia.
Terminada a valsa, novamente fui conduzida por meu príncipe até o camarim que magicamente transformara-se em uma tenda que remontava aos tempos egípcios onde os desenhos representavam o corte do cordão umbilical e o voo da fênix.
Coloquei meu último vestido que guardava a surpresa que há muito aconcheguei em meus sonhos. O vesti com um prazer descomunal. Todos sabiam que não era dada a etiquetas e protocolos e hoje não seria diferente.
Apesar dos esforços de minha mãe em tudo ser tradicional eu não poderia entrar na adolescência sem demonstrar minha personalidade discrepante com a maioria das princesas de contos de fadas. Estava excitada ante ao desfecho que seria minha próxima aparição.
Meus cabelos agora soltos pelo ombro como uma cascata de ouro aformoseava o decote em encontro ao colo alvo e seios arredondados. Minha boca agora era delineada por um batom carmim e meus brincos de rubi caiam em argolas.
Parei no topo da escada, agora vestida com tapete vermelho vivo de veludo, sentido o golpe do momento ante os olhares surpresos que infiltravam e transpassavam meu corpo jovem. As expressões boquiabertas demonstravam a incredulidade. A doce e meiga princesa se transformara em uma estonteante e sensual cigana. Suas vestes ínfimas mostravam suas curvas bem delineadas.
– Meu Deus que rapariga de gosto rebuscado!
– Oh! Que será que virá após essa entrada pitoresca!
A música cigana explodiu pelo salão trazidos por personagens místicos escolhidos pela própria princesa. Fazia questão de tê-los em seu debut. Afinal era seu povo! Desço a escada sensualmente ao ritmo da dança do ventre e antes que chegasse ao fim fui arrebatada por um jovem displicente em trajes típicos e ali, diante de tolos incrédulos, volateamos como se somente nós ali habitássemos.
Dançarinas do ventre apareceram em todos os cantos do salão agora adornado por lindo véus de seda numa entontecedora alcova. Morangos recheados de chocolate eram oferecidos numa alusão à sensualidade, pequenas taças de licores aos poucos fizeram com que os convidados se embrenhassem e as máscaras agora escondiam a timidez que se solta e permeia por caminhos antes nunca esperados.
Ali estava minha libertação de anos de vida cingidas às mentiras que me foram incrustadas na pele e na alma. Amava meus pais, mas não lhes permitiria por mais nenhum um segundo de minuto que me tirassem do âmago de meus antepassados.
Olhei os olhos desesperados de minha mãe que sentia seu coração subir pela garganta diante do horror que presenciava. Meu pai me olhava em um misto de surpresa e admiração. Por anos lutara contra essa mentira, mas agora via sua pequena fênix se libertar.
Aproximou-se devagar, como a medir os passos e numa mensura exabundante de volteios me saudou.
– Seja bem vinda minha pequena Natasha! O mundo em epígrafe te aguarda!
M.A.Oliver - Nov/2021
Crônica Surreal - Desafio Luíz Amato
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Comentários
Que maravilha de
Crônica parabéns Angélica...
Obrigada Eudalia pelo carinho e leitura!
Obrigada pelo carinho e pela leitura!
Belíssima crônica, Angélica!
Parabéns amiga.
Bjs
Obrigada pelo carinho e pela leitura!