Mosca-varejeira

Mosca-varejeira

 Por J. A. Medeiros da Luz

Externo meu pensamento naquela tarde, tão recente: No momento poderia eu estar em marcha, numa caminhada solitária, pela trilha sob árvores, naquela mescla de nostalgia silente, de fim de inverno tropical com cara de pleno outono, quebrada pelo estrepitar de folhas sob nossas botas, inspirando o aroma adstringente dos perfumes vegetais, quase tal qual um novo Rousseau, com aqueles — lá dele! — devaneios de caminhante solitário. Entanto, em vivo contraste a esse romantismo de bom selvagem de polainas e cartola, permaneço, embora sob o frescor da brisa que perpassa pelo alpendre, guarnecido de grades metálicas em losangos e volutas brancas, quieto e meditabundo, nesta tarde que — não demora muito — lá irá se fazendo lusco-fusco.

Talvez assim seja mesmo a vida, e nos cumpre apenas fruir essa sequência de instantes ordinários, mas transcendentes e algo fantasmagóricos, o que pode elevar nossas vistas até as excelsas nuvens que se advinham para além da ramalhada nua do bosque apetecido. E se assim é, aceitemos de olhos cerrados este abraço afetuoso que nos dá o universo, a cada passo, a cada dia, a cada batimento cardíaco; numa comunhão (uma religação) com o cosmo, desde os seus ásperos fraguedos da montanha, até a fiada quase despercebida das diligentes formigas.

E, neste cogitar (que é a essência do próprio existir segundo muitos), posso ver acercar-se a mim a escada serpeante de placas de granito, equilibrando-se sobre a coluna dorsal de concreto Portland, fincada curvilineamente sobre este pelejado jardinzinho em aclive, à minha frente.

Uma bela mosca, mosca-varejeira, com sua carapaça, de refulgente verde metálico, transluzindo ao sol por trás de duas asas de vidro, pervaga, passeia meio ao acaso no dorso de uma folha seca, por vezes limpando sua tromba com as mãozinhas, supostamente em demanda de inexistentes gotas de néctar e de frutos maduros do chão do jardim, na secura desse fim de inverno, que acabou por tostar folhas de relva e ressecou talos de taquaras, dando-lhes uns desmaiados tons acastanhados. E se ela sente que ela de fato existe, logo cogita, forçosamente pensa.

E deve lá, neste instante, alocar a vigilância e a atenção de alguns dos seus múltiplos olhos, em hexágonos de colmeia, sobre o bípede enorme e tardígrado que a observa justo agora, a cavaleiro, desde a cadeira na varanda. Fato é que não parece — ao menos à primeira vista — um comedor de moscas... Contudo, vá-se lá saber!

Mas (continuando), afinal, por que tanto me mira e remira, entre piscadelas de pálpebras,  com esses olhos curiosos de predador gigante? Embora, como aconselhou a meu tetravô aquela velha mosca gaulesa, por nome René DesCartes, que voejava (um enxame de anos para atrás) pelo mercado de peixes de Paris, com suas regras de bem conduzir a razão, devemos — como nos sentencia ainda, pela cadeia de vozes de meus ancestrais — evitar escrupulosamente a prevenção e a precipitação.

É verdade, esse bípede, implume e, ademais disso, calvo, aparentando já madureza rumando reto para a senilidade, não deve ser lá grande ameaça. E lesma, como se vê que é, nem que quisesse me acertaria com sua suposta língua pegajosa. Mas em todo caso, sua tolinha, batamos asas em busca de outro quintal, com mais potencial de doçuras de mangas e carambolas suculentas a fermentar; e com menos curiosos. Ora, pois, alcemos voo e não se fale mais nisso!

E lá se foi, librando-se no ar e a zumbir gostosamente sob o sol, que já declinava rumo à secura rubra do poente.

 

Ouro Preto, 7 de setembro de 2020.

 

 

 

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • "Talvez assim seja mesmo a vida, e nos cumpre apenas fruir essa sequência de instantes ordinários, mas transcendentes e algo fantasmagóricos, o que pode elevar nossas vistas até as excelsas nuvens que se advinham para além da ramalhada nua do bosque apetecido."

    Sem palavras!!! Parabéns J.A.Medeiros!

    DESTACADO!

    • Obrigado, cara Angélica. Este trecho de prosa, contendo jocosas alusões (diretas e indiretas) a uns monstros sagrados da filosofia europeia, acaba por se caracterizar como incipiente meditação acerca da arrogância humana. Nossos mil trezentos e poucos mililitros de rede neuronal nos enganam, fazendo-nos crer o sermos os verdadeiros e únicos suseranos da razão. E, por fim, as pinceladas de autocrítica ficam como o desdouro final da pílula da vida, desnudamento necessário para que lhe conheçamos o  sabor e odor reais, por mais que nos venham a ser adstringentes.

      Abraço deste tropeiro virtual, desde uma entre as muitas veredas já palmilhadas.

      j. a.

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