Boneca de Louça
Fico a observar minha vozinha, que está tão concentrada em arrumar o vestidinho de sua boneca de louça, que nem percebe minha presença.
Vozinha tem 90 anos e acredite, a boneca tem 87 anos, em perfeito estado de conservação, assim como minha vozinha, que nem aparenta a idade que tem, no rosto e na disposição.
E fica horas arrumando o vestido de seu tesouro: sua boneca de louça.
Pergunto sobre a boneca e seus olhinhos brilham de satisfação ao contar, já perdi a conta das vezes, do dia em que ganhara de presente sua boneca de louça. Diz, num entusiasmo e memória de causar inveja em muitos jovens, a história de sua preciosidade:
“_ Eu me lembro sim da boneca mas não me lembro das dores não!!!”
( Fico por entender) Ela ri e recomeça:
“_ Sabe o que é barricada???” Digo que não.
“_ Era onde minha vovó fazia sabão de quadra ou de bola. Pegavam as cinzas na peneira e colocavam na barricada com uns negócios lá que não sei o que é e ai ficava pingando embaixo nas quadras. Eu tinha 03 anos e queria ajudar a fazer...
E lá vou eu toda traquina com a peneira na mão... só não sabia que debaixo das cinzas haviam brasas... eu cai de joelhos e quando fui levantar afundei as mãos nas brasas... me levaram para o médico, que levava 03 horas para chegar a cavalo, lá ele enfaixou meus dedinhos ...
Todas as vezes que iam trocar os curativos doía demais e minha vovó me dizia: ‘_Não chora que te dou uma boneca do seu tamanho. ’ E foi assim que eu ganhei minha boneca de louça e estamos aqui, eu e ela, mas não me lembro das dores não!”
E assim, dando uma risada, volta para sua boneca, costura aqui, costura ali, tira uma linha aqui, outra lá e assim mergulha em seu mundo, o sorriso no rosto como se uma lembrança estivesse a passar pela memória, num momento único em que volta a ser a criança dos dedos queimados com sua boneca de louça.
Maria Angélica de Oliveira – 05/02/2017
In Liga dos 7
Comentários
Obrigada Marso...
Angélica, seu texto é passaporte para uma viagem no tempo, na saudade. Barricadas, cinzas, sabão de quadra são elementos que conheci muito bem quando criança, morando na roça - a boneca de louça era um luxo para poucas meninas... A história da sua avó é muito poética: a boneca ficou; as dores, não... Ensinamento de vida - e numa linguagem plena de referências muito sentimentais. Como não se encantar? Todos nos encantamos com a boneca, com a avó, com o tempo da barricada, com o seu talento!
Obrigada Edvaldo... realmente o que me chamou tenção foram estas palavras:
“_ Eu me lembro sim da boneca mas não me lembro das dores não!!!”
E os brilho nos olhinhos só com o prazer em poder contar sua história.
Não há dinheiro no mundo que pague momentos assim.!!!
Parabéns, poetisa, poema lindo, maravilhoso, o seu EU criança aflorou totalmente. Abraços, paz e Luz!!!
Obrigada Ilário...
Recordações que ficam para toda a vida amiga. A minha avó, estará sempre presente no meu coração também. Parabéns querida, fez-me matar um pouco a minha saudade, beijinho.
Obrigada Cristina...
Obrigada Márcia...
Que bom é lembrar momentos de infância
brincar com a boneca predilecta...mesmo que seja de louça
e com todas as suas fragilidades...
Carmen Costa ...beleza o acompanhamento
Abraço poético
FC