OS SEMEADORES DO CAMPO DE MILHO

OS SEMEADORES DO CAMPO  DE MILHO

 

Seu Cosme obtinha parte do sustento da família com a exploração de sua propriedade, denominada "Caranguejo", situada à margem do rio Jaguaribe. Tinha família grande composta de dez filhos, sendo oito mulheres e dois homens. No sertão do Ceará, no início do passado século,  a presença de filho homem era de extrema importância para o auxílio  nas  lides do campo. O desequilíbrio entre os sexos no caso do Seu Cosme  era ainda agravado pelo fato dos cinco primeiros filhos serem do sexo feminino, que contribuíam apenas com as tarefas do lar. Em consequência, seu filho mais velho Almir, o primeiro homem depois das cinco mulheres, cedo foi convocado para auxiliar o pai nas atividades do campo. Com apenas doze anos de idade teve que se submeter ao rigor e disciplina do pai e ajudá-lo nos trabalhos de amanho da terra e cuidados  com os animais domésticos da fazenda.

Seu Cosme era rigoroso e disciplinado em sua rotina de trabalho. Não costumava levar farnel com merenda quando se dirigia ao roçado para mais um duro dia de trabalho. Saía cedo da manhã logo após o raiar do sol e retornava no início da tarde já passada a hora do almoço. Antes da partida era servido por sua esposa um farto  desjejum, constituído de frutos da terra nordestina, a saber: cuscuz, manteiga de garrafa, macaxeira, queijo coalho, coalhada, café e leite. A coalhada e o café eram adoçados com rapadura raspada. Durante a safra do milho, no inverno, havia a pamonha e a canjica. Os produtos feitos de trigo não cabiam em sua mesa pois  eram limitados às famílias de maior posse.

O inverno (quadra chuvosa) havia começado e era época de plantar. O terreno  estava já limpo e preparado para receber as sementes. Seu Cosme havia levado semente  suficiente para o plantio do roçado de milho, cerca de três tarefas ou aproximadamente um hectare. Havia chovido na semana anterior e o solo estava úmido, o que facilitaria a tarefa de abertura das covas para abrigar as sementes. A umidade do solo seria também de extrema importância para a rápida germinação das sementes. A atividade de plantio era dividida entre pai e filho. O pai ia na frente abrindo as covas, enfileiradas, com sua enxada. O menino o seguia depositando nas covas abertas três a quatro sementes, em seguida enterrando-as com o auxílio dos pequenos pés. Laboravam, pai e filho, homem e menino, em perfeita sintonia. Pouco conversavam, tão concentrados estavam cada um em sua tarefa. Era um trabalho tedioso, cansativo, principalmente para a criança que tinha que caminhar encurvada para deixar cair com precisão, no centro da cova, as sementes removidas do bornal que conduzia a tiracolo. Com o passar das horas o cansaço aumentava, a temperatura subia pela inclemência do sol, a fome apertava e se instalava no organismo da criança ainda pouco afeita à dureza do regime de trabalho do pai.

Diante de tamanha provação o pequeno Almir fez de suas fraquezas força, criou coragem e pediu ao pai para voltarem para casa. Externou que estava com muita fome, além de extenuado. O pai replicou que voltariam sim, após terminarem o plantio da semente levada, suficiente para a gleba preparada. Faltava pouco dissera ele, cerca de um quinto da área.

Na fileira seguinte o menino decidiu abreviar seu padecimento. Ao invés de três a quatro, deixou cair dez a quinze sementes. Na seguinte elevou o ritmo para vinte a trinta. Mesmo assim ainda sobrava semente no bornal. Já extenuado decidiu extrapolar o racional e passou a lançar em cada  cova aberta sua pequena mão cheia de sementes de milho. Assim procedendo logo esvaziou o bornal por completo.

Com indisfarçável alegria informou ao pai que a tarefa havia sido completada. A última semente tinha sido sepultada na cova e, pensou, com ela suas desditas. Agora podia retornar para casa, para a água fria do pote da cozinha e para o  almoço, frugal é bem verdade, mas de bom tamanho  para saciar sua fome.

Seu Cosme estranhou o fato de as sementes não terem sido suficientes para o plantio de toda a terra preparada. Era um agricultor experiente, bastante meticuloso e não costumava falhar em suas previsões. Mas, acabou rendendo-se aos fatos. As  sementes tinham acabado. Nada mais havia a fazer no momento. Teriam que voltar ao campo no dia seguinte para terminar o plantio, cerca de um quinto da terra preparada. Assim, no dia seguinte voltaram ao campo e em pouco tempo completaram o trabalho interrompido.  

Após uma semana, ao retornar com o filho ao campo para inspecionar a germinação, ficou visível a traquinagem de seu ajudante. As covas das duas últimas fileiras plantadas revelavam tufos de plantas emergindo do solo a denunciar a travessura do pequeno Almir que ao se ver denunciado, desnudado em sua esperteza, ficou desconsolado, à espera de uma rigorosa punição do pai. Seu Cosme falou: "então é isso seu bandido; e você com aquela história de que a semente tinha acabado e não fora suficiente para  completar o plantio da área preparada".

O problema foi sanado após algum trabalho com o desbaste das plantas excedentes que contou, inclusive, com a prestimosa e diligente ajuda do  filho.   

Desta vez Almir escapou de uma rígida punição tendo sido  apenas repreendido. Certamente seu Cosme reconheceu o rigor de seu regime de trabalho e a fragilidade do filho, apenas uma criança. Apesar de externar aborrecimento com a repreensão, deve ter sorrido intimamente, talvez até envaidecido da adulta  esperteza associada à pueril  ingenuidade revelados pelo filho. Afinal, não passava de uma criança forçosa e prematuramente introduzida no mundo e nas  responsabilidades dos adultos.

F J TÁVORA

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Comentários

  • Semear a terra, uma arte muito bela! Lindo conto, Francisco! Bjs.

  • Belíssimo, Francisco! Gostei muitooooooooooooooooooo!

  • Mais uma vez, nossa ADImiração e APLAUSOS pelos teus Dons Natos de Contista - Menino Poeta F J Távora!

    gaDs

    124916207?profile=original

     

    • Muitíssimo obrigado pelo gentil comentário que, partindo de quem parte,  constitui um grande estímulo  ao meu,modesto labor literário.

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CPP