Recordando o passado (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras) @josecarloscontador
A cidade está em festa. Na praça principal há barracas, exposições de trabalhos artesanais e artísticos, praça de alimentação, com vendas de sanduíches, caldo de feijão, caldo de mandioca, bebidas diversas, sorvetes e picolés, exposição de quadros e fotografias e música ao vivo.
Marco caminha pela praça onde estão ocorrendo os eventos. Cabisbaixo, sempre olhando para tudo e não perdendo nada, por um momento para defronte à barraca onde biscoitos, pães e algumas guloseimas são comercializados. À frente, o forno de tijolos construído para retratar as quitandas que eram assadas e alguns fogões à lenha que relembravam a história antiga, ou seja, o período por volta dos anos quarenta até meados dos anos oitenta, mas, em algumas fazendas e sítios, a prática ainda é feita: Assam pães de queijo, biscoitos, roscas e demais produtos no grande forno, que sempre está perto do cômodo da cozinha.
Com seus cinquenta e poucos anos, ele olha para o forno. Procura algo de especial ali. Vê que ainda há brasas que ardem fortemente e a fumaça exala o odor direcionado para o rosto magro, com barbear feito no dia anterior. Procurando ele esquivar-se, onde os olhos lacrimejavam a sensação da fumaça, deu alguns passos para frente e quase se chocou com o dono da barraca, com lindo sorriso nos lábios, foi logo dizendo:
- Bom dia! O senhor está gostando das ornamentações desta praça?
Meio espantado, pois ainda não estava atento às movimentações do local, ainda assustado com a linda e afetiva informação do barraqueiro, passando a mão direita sobre os olhos, pois a fumaça ainda o perturbava, assim respondeu:
- Bom dia, senhor!
- Estou eu aqui, após vários anos sem retorno a esta cidade.
- O tempo passa, às vezes a saudade aumenta.
- Não tenho tantos conhecidos aqui, pois, ainda muito jovem, fui obrigado a mudar para a cidade grande, porque era preciso.
- Cresci entre arranha-céu por todos os lados. Ruas asfaltadas, carros, caminhões, ônibus, ambulâncias e buzinas por todos os lados. Pessoas que correm e muitas das vezes negam um “bom dia” e, até mesmo, “boa noite”. Tudo gira em forma do “Eu”, do desconhecido, do reverso, da ingratidão, de pensar que tudo que está a sua volta é crime, é marginal, é violência.
- Estou assustado com o calor que recebo de sua pessoa, neste momento.
O homem olhando para aquela pessoa de bonita aparência, bem vestido, com relógio de marca no braço, com telefone celular de última geração, ficou parado e pensava consigo mesmo que seria mais um problema na vida.
Então Marco assim disse:
- Recordo-me de quando ainda era criança.
- Meu pai tinha um terreno aqui por perto, ou seja, para chegarmos até esta cidade, tínhamos que pegar ônibus.
Continuou a contar. O barraqueiro escutava com muita atenção. Até parou com os afazeres. Pegando dois banquinhos de madeira, ofereceu um a Marco e outro para ele. Os dois sentaram-se e Marco continuava a falar:
- Obrigado por escutar-me, mas morávamos no sítio.
- Ainda pequeno, meu pai pedia que minha mãe vestisse a minha irmã e a mim.
- A bermuda vermelha, a minha predileta, a camisa branca de malha, onde havia a estampa do Mickey. Nos pés, o negro e bem limpinho kichute e meias pretas.
- Andávamos por cerca de dez a quinze minutos. Lá, já estávamos na estrada principal e aguardávamos o ônibus para esta cidade.
- Se chovesse, tínhamos a capa e a sombrinha de minha irmã. Eu não gostava de agasalhos. Preferia sentir frio e ficar molhado, pois amo a chuva. Na poeira, ficava sempre limpando o kichute, pois, para mim, era o sinônimo de liberdade e conquista.
- Então, o ônibus chegava. Sempre eu era o primeiro a entrar e nem mesmo esperava que outras pessoas descessem naquele ponto. O motorista, por nome João, sempre me xingava e dizia que eu era sem educação. Não importava, porque eu sempre sentava na primeira poltrona e assim ia vendo a estrada até chegar na cidade.
- Passa-me na mente de véspera da semana santa virmos para as festividades. Meus pais não tinham casa aqui. Ficávamos em casa de minha avó, por nome conhecido “Fiinha”, que sempre nos acolhia e matava a saudade em ver-nos.
- Neste dia, antes de sair da casa de papai, comi muito. Mamãe fez muitas quitandas e me lembro perfeitamente o quanto comi. A barriga ficou bem cheia. Já estando dentro do ônibus, senti que o estômago estava pesado. Vieram gotas de suor no rosto, a exsudação estava intensa e bastante frio. A estrada estava bem ruim, com muitos buracos. O veículo balançava muito. Pedi ao motorista que parasse o ônibus, mas o maldito nem atenção quis dar-me. Não aguentei e vomitei no corredor do ônibus. Ele, o motorista, ainda me xingou e falou que iria eu lavar quando chegasse na rodoviária. Então, quando chegou na cidade, assim que o passageiro estava descendo, eu descia atrás dele e cheguei em casa de vovô primeiro que minha irmã.
O tempo passava e Marco contava os acontecimentos de sua vida. Agora já falava da família, da profissão de médico e cientista no exterior e muito mais ele desabafava com o barraqueiro.
A conversa foi longa. Já durava pelo menos quase duas horas.
Marco também ajudou o feirante a massar quitandas e até vender para alguns que ali estavam.
Já cansado, Marco comprou mais quitandas e, quando ia despedindo do feirante, foi assim perguntado:
- Dr. Marco, fiquei muito feliz em tê-lo como companhia nas horas passadas.
- Antes do Doutor ir embora, talvez nunca mais eu irei vê-lo, vou dizer-lhe:
- Estou recordando desta passagem.
- Lembro-lhe perfeitamente quando o senhor saiu correndo e deixou sua irmã para trás. Eu é que tive que ajudá-la a carregar a bagagem.
- Naquele ônibus, eu ainda era pequeno, na mesma idade do senhor, e o motorista era meu pai. Eu o ajudava no serviço de cobrar as passagens. Eu era o cobrador mirim.
- Então, com seu vômito, eu é que tive que limpar o ônibus para meu pai, porque se não o fizesse, seria surrado.
O espanto foi total. Marco abaixou a cabeça e lágrimas saiam dos olhos, mas escondidas pelo escuro óculos.
Marcos, assim falou:
- Quanta coincidência?
- Jamais imaginei que encontraria a pessoa que presenciou tudo. Recordei-me de ver-lhe fazendo as cobranças. Vestia você o uniforme mirim na cor azul e o chapéu kep na cabeça. Era bem exigente e gostava de cobrar rápido.
- Então, o que posso fazer para repará-lo do serviço que você fez por mim?
O feirante olhou para Marco, aquele homem de boa aparência, prestigiado, médico e cientista, morador no exterior, após dar-lhe o forte abraço, exclamou:
- Doutor! Naquele dia eu fiquei a tarde toda limpando seu vômito. Estava o regurgitamento com odores péssimos. Vomitei também. Terminei o trabalho era por volta de oito horas da noite.
- Quando fui para casa, meu pai ainda me surrou porque demorei para limpá-lo. Não jantei e no outro dia nem quis comer nada, porque lembrava daquele horrível expelir de alimentos. Até hoje, quando lembro e comento com minha família, dá-me muito nojo.
- Então, para sanar tudo até hoje, conforme o doutor pediu para reparar os danos, peço-lhe que faça a indenização de um mil e quinhentos reais, que poderão ser pagos por meio de pix, no número a seguir, que é meu CPF.
Marcos, então, efetuou o pagamento. Ainda levou muita quitanda para a família.
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