Abutre disfarçado de Passarinho

Abutre disfarçado de Passarinho

 

Patrícia era uma mulher bastante alegre e extrovertida, a seu lado ninguém conseguia ficar triste. Este seu modo de viver a vida, além de lhe prolongar a juventude, ninguém diria que já passara os quarenta, também já lhe trouxera alguns dissabores, principalmente de índole sentimental. Os seus namorados não aceitavam o seu espírito extrovertido, acusando-a de ser uma frívola e irresponsável.

Lourenço fora o único com quem vivera maritalmente e de quem se sentia como uma verdadeira viúva. Havia já quatro anos que Lourenço falecera. Nem a morte, prematura, do seu único companheiro, não tiveram tempo de oficializar a sua relação, lhe tirara a alegria de viver, até porque esse fora um dos últimos pedidos que ele lhe fizera, nunca se deixar vencer pelas agruras da vida, nem permitir que alguém a magoasse.

Jorge surgiu de repente, rondava os cinquenta anos e ninguém sabia quem era, pelo menos ali no departamento financeiro, onde Patrícia desempenhava funções. Aos poucos, foi-se integrando no seio dos seus novos colegas de trabalho, entre os quais se integrava Patrícia, e foi-se sabendo que se tratava de um gestor, com créditos firmados, que viera da concorrência, além de que era divorciado.

Rapidamente conseguiu conquistar a admiração e simpatia dos colegas, entre as quais as dela.

Os colegas, principalmente o sexo feminino, não se cansavam de a incentivar a ir em frente e dar-lhe uma possibilidade de a fazer feliz, como se ela fosse infeliz, dizendo-lhe que já era tempo de ela refazer a sua vida sentimental e que não poderia ter encontrado melhor partido que Jorge.

Foi assim que, após quase um ano de namoro, resolveram unir as suas vidas através dos laços do casamento, mas teria de ser somente pelo civil, visto o divórcio de Jorge ter resultado de um casamento pela igreja, o que impedia nova celebração religiosa. Patrícia não deu grande importância ao caso, embora soubesse que esse era um velho sonho de seus pais.

A cerimónia, onde todos os grandes amigos de Patrícia estiveram presentes, bem como alguns amigos de Jorge que Patrícia nunca antes tinha visto, revelou-se de uma beleza digna de ser recordada por muitos e bons anos. Ela estava deslumbrante, era de facto uma mulher muito bonita, e Jorge não precisou de caprichar muito para se sentir à altura da noiva. Faziam um par perfeito.

A cerimónia decorreu na própria quinta escolhida para o tradicional copo de água. E foi mesmo aí que esta começou a transbordar do copo.

Servido o repasto, seguiu-se o tradicional baile, o qual, como é tradição, foi aberto, pelos noivos, aos quais se foram juntando os familiares e amigos.

Assim que entregou a noiva nos braços do pai, Jorge desapareceu da sala, conjuntamente com alguns dos tais amigos que Patrícia não conhecia. A noiva não deu grande importância ao facto, pensando que iriam combinar alguma brincadeira, mas a demora em regressarem, despertou-lhe a curiosidade e foi em busca do, então, já marido. Ouviu vozes e foi-se aproximando, pé ante pé. Estava prestes a denunciar a sua presença, quando ouviu algo que a deixou petrificada. Um dos amigos de Jorge, dizia-lhe que agora tinha de mudar de vida, era um homem casado:

- Acreditas mesmo nisso? Durante este tempo desde que a conheci que a tenho comido como a um verdadeiro passarinho. Agora, daqui em diante, é como com as anteriores, ou voa baixinho ou tenho de lhe mostrar quem é o homem da casa. Sabes como é, temos de lhe mostrar como é, logo desde o princípio, e nada melhor que um bom par de estalos para não as deixar levantar voo.

Patrícia não só descobria que o marido já fora casado mais que uma vez, ao contrário do que sempre lhe contara, como também descobria que toda a sua doçura, não mais era que pura fachada para a enganar. Afastou-se sem se dar a ver.

O resto da festa decorreu em pleno clima de harmonia, não só porque não queria fazer sofrer seus pais, como também não lhe queria dar a perceber que descobrira toda a verdade sobre ele. Rumaram até ao hotel onde planeavam dormir para partir, no dia seguinte, em lua-de-mel.

Foi já no quarto de hotel, que Jorge a agarrou e a tentou beijar, ao que ela resistiu:

- Que se passa? Esqueces-te que és minha mulher?

- Não. Estou exausta.

- Quero lá saber se estás exausta. Quero-te, agora mesmo.

Ao lançar-se para a frente, na tentativa de a agarrar, Jorge tropeçou no pé dela e estatelou-se no chão do quarto:

- Quando andavas lá a dançar com os teus amigos e a esfregar-te neles, já não estavas exausta.

Patrícia ficou atónita, mas não se admirou com a acusação. Jorge nunca fora de ciúmes, mas também nunca fora homem de copos, ou pelo menos, ela, assim o pensara durante todo aquele tempo, quanto mais de insinuações como aquela que lhe estava a fazer. Encarou-o e disse-lhe que só o desculpava por ele estar bêbado. Ocultando-lhe tudo quanto escutara.

Enquanto se ia apercebendo que o marido não tardaria a adormecer, ali mesmo no chão, Patrícia tomou uma decisão, o último pedido de Lourenço assim lho exigia. Ainda ouviu Jorge proferir uma série de ameaças, até que caiu num profundo sono.

Aguardou um pouco, certificou-se que ele adormecera mesmo, agarrou na sua mala de viagem, tivera a lucidez de só levar o essencial para não levantar suspeitas, saiu do quarto, passou pela recepção do hotel e pediu papel onde pudesse deixar-lhe um recado, reforçando o pedido para não se esquecerem de lho entregar. O recepcionista, estranhou, mas nada disse.

Jorge só acordou passadas algumas horas. Não só se apercebeu que dormira no chão, como também que estava sozinho no quarto e que Patrícia nem dormira lá, pois a cama estava intacta. Levantou-se, viu que a esposa lhe deixara o seu bilhete de avião, tomou um banho, vestiu-se e desceu até à recepção, onde lhe entregaram o recado deixado pela mulher. Leu-o. Patrícia dizia-lhe que ele a ofendera bastante, mas que como atribuía tudo ao seu anormal estado de embriaguez, fora dormir a casa dos pais e apanharia o primeiro avião com destino ao local da lua-de-mel, pois não queria discussões em público e que logo falariam quando ele lá chegasse.

Jorge, qual abutre a que nenhum passarinho escapa, nem parou para pensar em tudo aquilo. Só ao chegar ao hotel onde tinham marcado a lua-de-mel é que verificou que ela ainda não chegara. Se fosse ia, se não fosse, melhor, pois mulheres e bebida era coisa que não faltava por ali.

Os dias foram-se passando e de Patrícia nem sinal, sem que Jorge se incomodasse muito com o facto, a única coisa que o preocupava era que Patrícia pudesse andar envolvida com algum dos convidados. Sim, que toda aquela intimidade dela com alguns deles, lhe cheirara a qualquer coisa mais forte que simples amizade.

Jorge regressou a Portugal, rumou ao apartamento que tinham alugado para viver e…o seu estado era de desespero, Patrícia, só podia ter sido ela, só lhe deixara aquilo que realmente lhe pertencia a ele, praticamente nada. Foi ao chegar à cozinha que viu uma série de envelopes, eram os envelopes dados pelos seus convidados, intactos. Um outro envelope despertou a sua atenção. Abriu-o. Não, não podia ser. Patrícia conseguira a anulação do casamento, uma simples frase fê-lo perceber tudo, ela ouvira a sua conversa com os amigos:

“Podes considerar-te um abutre muito esperto, mas a este passarinho, nem com uns bons pares de bofetadas conseguirás domar”

 

Moral: “Quem colhe as ervas daninhas logo pela raiz, tem o direito a ser feliz.”

 

Francis D’Homem Martinho

17/02/2020

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Comentários

  • Uau! Amei! Um texto que prende o leitor do princípio ao fim! Meus parabéns. 

    • Amigo Geraldo Coelho Zacarias, boa noite. Infelizmente anda por aí tanto abutrte. Obrigado pelas tuas palavras. Abraço.

       

  • 3700938369?profile=RESIZE_710x

  • 3619471?profile=RESIZE_710x

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    • Amiga Ana Lúcia Mendes, boa noite. Infelizmente vivemos numa sociedade podre. Fico feliz por saber que gostaste, pois são os leitores que servem de fiel à balança do escritor. Beijinhos.

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CPP