Carpintaria

Carpintaria

J. A. Medeiros da Luz

 

Não há em minha essência

Neblinas de sonho e de melancolia.

Qual velho gafanhoto verde na folhagem,

Meu imo contenta-se em mimetizar

Prego de ferro galvanizado que penetre,

Rasgando, a carne enfibrada

Da vigota de madeira,

A prender rijo a carenagem

À custa do vigor daquelas

Pancadas na cabeça, desferidas

Pelo martelo do destino.

 

E lá do quintal de meu vizinho

Só se percebem, enfim, pelo vizinho

As notas musicais da percussão,

Estrepitosas, bruscas, estúpidas, titânicas,

Sinalizando a doce monotonia

Da rotina dos afazeres

Em tempos de suor e de labuta.

 

Não,

Meu espírito não exibe nada

Da cantada evanescência,

Das trêmulas palpitações

— dir-se-ia: da sublimidade —

Daquela música dos sonhos.

 

É somente mais um infinitésimo,

Ou, expressando-me, assim, concretamente,

É apenas mais um prego

Fincado no cavername da chalupa,

Esta nave que se vai,

Entre mares de brumas e de ventos,

Naquela demanda inescapável

De nossos mais esquivadiços horizontes.

 

 

Ouro Preto, 5 de agosto de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • 9386224260?profile=RESIZE_584x

    • Agradecido pela visita, sempre motivadora, cara Angélica.

      Veja sua premonição ao ilustrar seu comentário com o poema de Ricardo Gomes, falando dos "lamentos da madrugada". Com efeito, a ideia deste meu poema brotou lá pelas 4:00 h, quando a insônia me levou a ler minha velha coleção encadernada da Abril Vestibular — Ciências Exatas (de um longínquo preparatório 1974), em que me caiu na vista o capítulo sobre o simbolismo, enquanto escola literária de fin de siecle. Sempre me pareceu, à minha revelia, que havia uma mãozada de afinidade pessoal com aquele estilo vaporoso, com imagética intensa e incorpórea de sonho...E, talvez por um certo pudor cultural, ou pessoal, surgiu-me o impulso denegatório, que veio a  se consubstanciar neste poema,  procurando-me retratar num clima terra-a-terra. Vê lá se pode uma coisa dessa!

      Abraço do Jota.

       

  • Pessoal: 

    É bem verdade que também os metidos a poetas sem o sê-lo (e sem o selo), somos seres mui fingidores, igualmente. E, afinal, ao pespegar o ponto final no derradeiro verso, fica-se na sensação de estranhamento, sem se saber se o tema criticado foi enaltecido, ou — correspondentemente — se o tema glorificado quedou reduzido pela verve crítica. Enfim, parece ser o caso esquizoide de o mimetizador acabar se vendo, nas entranhas, como o alvo mimetizado. Abraço do velho tropeiro virtual, que põe o quepe de marujo, vez ou outra. J. A.

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