Daguerreótipo

 

Daguerreótipo

J. A. Medeiros da Luz

Uma parede clara, em tom pastel.

À frente dessa parede clara,

Uma silhueta humana

Exibindo delgada faixa marfínea de um sorriso.

Dependurado no canto superior direito da parede,

O cilindro esmaltado de um relógio

(Centelhando sua calota vítrea)

Envelopa ponteiros, estando um deles, marchante,

A acoplar-se com continuado e audível

Tique-taque, tique-taque, tique-taque…

Dia virá em que terão cessado:

O mecanismo de engrenagens propelidas,

A verticalidade dos tijolos argamassados,

O claro tom pastel.

E da humana silhueta restará

O vaporoso ectoplasma de emoções,

De lembranças a evanescer,

Na cadência de outras silhuetas,

Que, igualmente, a seu devido tempo,

Hão de se diluir, imitando

— Na natural ordem entrópica, antrópica da vida —

Aquele deslembrado vulto predecessor.

Aquela silhueta que, posando,

Não se apercebia

De que, em verdade,

Todos, todíssimos relógios

Contam regressivamente.

 

Ouro Preto, 2025 — maio18.

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • Belíssimo poema, J.A. ! Parabéns!

    Um abraço 

    • Caríssima Márcia: lisongeado pela visita e apreciação.

      Essa história de Daguerreótipo talvez tenha também reflexos — ditados pelo subconsciente, esse maroto — de poemas sobre  tema correlato, como o do grande C. Drummond de Andrade, com o seu antológico "Os mortos de sobrecasaca" (inserto no livro Sentimento do mundo).

      Abraço do jota.

       

  • Como sempre um belíssimo poema J.A. Mas, quem puder tira a dúvida de um leigo: "daguerreótipo" seria o primeiro processo fotográfico anunciado e comercializado ao público. Inventado por Louis Daguerre em 1839? Parabéns J.A. e um forte abraço! #JoaoCarreiraPoeta.

    • Com efeito, caro João Carreira Poeta, a titulação do poemeto foi uma ligação sentimental com uma velha fotografia de família. Foi um modo pessoal de intensificar a magnitude do tempo, com toda a solenidade que as coisas vetustas nos suscitam. Os irmãos Daguerre e depois os Lumière dispararam uma revolução mágica. O mundo jamais foi o mesmo após a fotografia e o cinema.

      Aliás, antes dos Daguerre (1839), o francobrasileiro Hercule Florence registrava, pela primeira vez (1832/1834) imagens com emprego do nitrato de prata. Ele veio ao Brasil (e ficou aqui até a morte, em 1879), como componente da famosa expedição do Barão de Langsdorff.

      Abraço.

       

  • Parabéns pela inspiração, J.A.

    ABRAÇO

    • Cara Ciducha:

      Muito obrigado pela visita a este faltoso colega (faltas atribuíveis a descompasso entre capacidade de entregas e a taxa aceitação de pendências). Mirar uma velha fotografia de família foi o elemento deflagrador desse poemeto fora dos mancais.

      Abraço e tenha a fruição um belo domingo à frente. Eu, talvez, o use para eliminar a pendência da declaração do famigerado imposto sobre renda. Cumpra-se!

  • Bem diferente J.A! Eu sinto atraído pelo diferente. Vale uma estrela!

    • Caro Ribeiro Rosa. Obrigado pela visita e comentário.

      Bagre velho, vez ou outra, se dá ao luxo de arriscar uma rabanada à flor d'água... Aí, aquelas pintas no lombo, que foram curtidas no ralar continuado do lodo no álveo do córrego, acabam — à luz do sol — por parecer diferentes, naquele fugaz momento, mais bonitas do que na realidade são...

      Abraço do j. a.

  • Prezado Poeta J.A.M.da Luz.

    Esperamos que esteja bem de saúde..

    De fato foi inventado muitos tipos de mecanismo com funcionamento mecânico...Daguereotipos....

    Passamos a sistemas analógicos e por fim digitais, e ainda vamos enfrentar a Inteligência Artificial com suas bondades e também muitas maldades ( crimes modernos).

    De fato o relógio tem uma contagem regressiva, do ponto de vista real... É uma realidade a função regressiva enquanto o tempo sem objetar segue em frente.

    Sinto saudades do tique taque do relógio , sofisticado de parede.Os ponteiros marcando segundos de nossos passos. Até quando!!!

    Hoje encontramos muitas quinquilharias baratas e sem qualidade, descartáveis. O relógio de parede, ora agora uma objeto , uma relíquia de família e o relógio de pulso estã  caindo em desuso porque as horas tem no celular (/Digital)

    "  A natural ordem entropica, antrópica da vida" repito este seu verso que gostei demais...

    A vida que segue física e espiritual

    Sua poesia é lindíssima e o importante não são meus humildes e sim o fato de que eu gostei.muito de ler.

    Abraços fraternos Poeta.

    • Meu prezado A. Domingos: gratificado pelo comentário.

      O velho enigma do tempo! Suplicia-nos desde antes dos gregos, passando por doutores (como Santo Agostinho), escolásticos, os homens da "história natural" (como Newton), e desembocando no relativismo einsteiniano...

      Para nós outros, afinal, pobres entes (até no sentido etimológico: "existentes") arrastadores de correntes de dúvidas existenciais, é o velho titã Cronos, o inclemente, devorador dos próprios filhos. E, sendo o dito cujo imbatível, ao menos podemos — num arroubo um tanto insano — dar-lhe uma banana e seguirmos, enquanto formos. E se a contagem é regressiva, que nos sirva de incentivo a deixarmos o mundo sublunar um infinitéssimo melhor do que era antes de nossa mísera passagem pelos trilheiros da vida. Isso já é um belo incentivo para esta marcha compartilhada.

      Abração do j. a.

       

       

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