Doutor Mexilhão, hipnotizador

DOUTOR MEXILHÃO, HIPNOTIZADOR

Miguel Carqueija

 

— Doutor Mexilhão, eu soube que o senhor é o melhor hipnotizador da cidade, isso é verdade?

— Creio que sim — disse o Doutor Mexilhão. Remexendo sua barbaça. — Se a cidade fica no mundo, então sou eu mesmo.

— Preciso urgentemente que o senhor me hipnotize, para que eu recupere a minha memória.

— Como assim? O senhor sofre de amnésia?

— Não é bem isso. Minha memória está boa, mas tem uma coisa importantíssima que eu não consigo lembrar.

— Bem, seu Gustavo, o que seria?

— Preciso lembrar onde foi que o papai guardou o testamento. Ele acaba de morrer e ninguém sabe onde está. E eu sei que ele destinou a maior parte dos bens a mim.

— Como é que o senhor tem tanta certeza disso?

— Porque eu era o filho favorito. O favorito! — gritou Gustavo, exaltando-se de repente. — Aqueles meus irmãos malandros não merecem um palito!

— Está bem. — Mexilhão pegou sua charuteira, tirou um charuto, cheirou-o e perguntou: — Aceita um charuto?

— Bem, não, obrigado. Mas o senhor consegue, Dr. Mexilhão?

— O senhor não tem nenhuma ideia?

— Sei que está na velha casa de papai, um triplex onde ele insistia em morar sozinho depois que a mamãe se foi. Mas eu já revistei tudo por lá e não encontrei!

— Será que alguém não tirou?

— Não, não pode ser! Eu lembro que ele tinha um esconderijo secreto, ele me mostrou uma vez, mas já lá se vão uns 15 anos e eu não consigo me lembrar! Saiu da minha memória!

— Está bem. Não precisa dizer mais nada. Vou hipnotizá-lo, mas aviso que eu cobro adiantado pelos meus serviços!

— Mas como? E se não der resultado?

— Vamos encarar isso de outro ângulo. E se o testamento não favorecer ao senhor? E se o senhor alegar que não tem dinheiro para me pagar?

— Não acho isso justo! Se a hipnose não der resultado o senhor me devolve o dinheiro?

— Já vi que o senhor é duro na queda. Está bem, vamos fazer de forma regulamentar: um contrato de serviço! O senhor paga um sinal de 50 por cento...

— Pois muito bem! Faça constar no contrato que se não der certo o senhor me devolverá também o sinal!

.....................

 

Caía a tarde e chovia quando Gustavo Amador dirigiu-se ao triplex vazio na Lapa. Seus olhos estavam com expressão de peixe morto e seus movimentos eram bastante mecânicos; assim mesmo ele não hesitava.

E com ele estava o Dr. Mexilhão, como parte do contrato. Afinal, como argumentou o médico, “nessa base de desconfiança mútua o senhor pode muito bem encontrar o testamento e falar que não encontrou. Para que eu tenha que lhe devolver o dinheiro”.

Gustavo acendeu a luz da entrada e apontou para a escada:

— Vamos subir — falou, com a voz do robô de “Perdidos no espaço”.

— Já sabe então onde está o documento?

— Vamos subir — repetiu o outro.

Foram subindo e acabaram chegando ao sótão. Lá estava tudo revirado, pois todo mundo já havia procurado, mas a um canto, perto de jornais velhos e sujos, baús enferrujados e poltronas quebradas, achava-se uma velha picareta. Gustavo foi direto a ela.

— Por isso ninguém acha: está cimentado. A picareta é para descobri-lo.

Pôs-se a picaretar o cimento, conforme afirmou, no ponto exato. Com muita dificuldade abriu um buraco e de lá afinal retirou uma pasta de couro.

— Aqui está! O testamento de meu pai está aqui!

— Tem certeza?

— Ora, dê uma olhadinha!

— Está bem. Já pode me pagar o resto, caro senhor.

— Quem é o senhor? Como entrou aqui?

— Como assim? Eu sou o Dr. Mexilhão, é claro!

— Ninguém pode entrar aqui, ninguém pode saber, papai não vai gostar de saber que um estranho entrou...

— Mas do que você está falando?

— Ninguém pode saber, meus irmãos não podem saber... papai me fez jurar segredo... é preciso silenciar o intruso.

Dizendo isso, ergueu a picareta.

E só então o psiquiatra se lembrou que seu cliente ainda estava hipnotizado.

 

Rio de Janeiro, 18 de novembro de 2018 a 7 de janeiro de 2019.

 

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