Injustiçada

Injustiçada

 

Lourenço preparava-se para abandonar a sala, quando ouviu aquela voz, melodiosa, que o chamava:

- Sr. Dr, pode dar-me uns minutos?

O jovem advogado ainda tentou argumentar não saber se a guarda de serviço, o permitiria, mas não resistiu a virar-se para o lado de onde vinha tão doce voz. A sua cara não enganava, estava perplexo, e não era para menos. Efectivamente tratava-se de uma mulher, ainda jovem, muito bonita e o seu rosto não enganava, estava num verdadeiro desespero:

- Bem, vamos lá arriscar.

Tal como o jovem advogado suspeitara, a guarda veio intimidá-lo a não parar a marcha que o levaria até ao final do corredor, não se comovendo com os argumentos, quer da reclusa, quer dele mesmo. No entanto, através de uma janela semi-aberta, a jovem conseguiu, ainda assim, passar um papel para a mão do advogado.

Lourenço sentia pressa em sair dali, não porque quisesse fugir para longe da jovem, mas sim por curiosidade em ver o que estaria escrito no papel. Após passar o último gradão que o separava do espaço fora da zona prisional, despediu-se da guarda e caminhou rapidamente para a portaria, ficando sem saber se a guarda não vira a jovem a passar-lhe o papel, ou se fingira que não vira. Despediu-se da guarda que estava à portaria e assim que se apanhou na rua, correu até ao seu carro. A ansiedade para ver o que dizia o papel que a jovem, de quem nem sequer conseguira saber o nome, lhe dera.

Sentou-se ao volante, abriu a mão e desembrulhou o papel, era uma longa mensagem, numa letra quase minúscula, onde a jovem contava o seu drama, chamava-se Letícia.

Lourenço ficou com a certeza que a jovem escrevera aquelas palavras sem um destinatário certo, pensara entrega-la ao primeiro advogado que por ali aparecesse, fosse ele ou outro qualquer. Dizia-se completamente inocente e vítima da sua ingenuidade, argumentando que fora usada por um namorado, o qual lhe escondera a verdade sobre o conteúdo da mala que lhe pedira para ela ir entregar a determinado local e que ao saber que ela fora apanhada, pela judiciária, não só a abandonou como ainda a acusou de estar a mentir.

Letícia ignorava tudo o que ia no pensamento de Lourenço, mas não duvidava que deveria ser algo do género: “São todos iguais, metem-se nas trapalhadas e depois dizem-se sempre inocentes, eles é que fazem as asneiras e depois a culpa é de toda a gente menos deles, da sociedade, dos amigos, da família, de todos, menos deles…”

Talvez se ela conhecesse o homem com quem tivera a sorte de se cruzar, pudesse saber que Lourenço apesar de ser um jovem advogado, ainda de cabeça limpa quanto a preconceitos desse tipo, isto é, nunca julgando os outros como um todo, também era alguém que acreditava na pureza do ser humano. Para ele, cada pessoa era um caso isolado e não seria pelo facto de a jovem não ter como lhe pagar que ele deixaria de analisar o seu caso, sem compromisso Aliás, o seu olhar de desespero, cativara-o. Ou teria sido a beleza da jovem reclusa, sentia-se dividido quanto às verdadeiras razões.

Lourenço, mal estacionou o carro, correu de tal forma apressada para o escritório, que a sua assistente até se assustou ao vê-lo entrar daquele jeito, logo ele que sempre se mostrara um exemplo da calma.

Naquela noite, Lourenço não conseguiu dormir e a causa tinha um nome, Letícia, reclusa 257789. O que ele ignorava é que nessa mesma noite, ao contrário do que vinha sendo habitual nos últimos tempos, a mesma Letícia, não só conseguira dormir tranquilamente, como também sonhara, toda a noite, que um belo e jovem advogado a ajudava a ultrapassar o verdadeiro drama em que se vira enredada.

Aquele que se pode considerar como o verdadeiro primeiro encontro entre advogado e constituinte, não tardou muito. Letícia não só voltou a repetir tudo quanto já lhe contara através do pequeno papel que ele, em segredo, continuava a guardar na carteira, mas, agora, mais pormenorizadamente, como também lhe deu conta do segredo, para com os pais, do momento que estava a viver, assim como lhe falou do advogado que se recusara defende-la ao saber que ela não tinha dinheiro para lhe pagar. Lourenço, após a escutar com toda a atenção e lhe colocar algumas questões, limitou-se a dizer-lhe:

- Não te preocupes com o dinheiro, irei defender-te de qualquer maneira, mas com uma condição.

Letícia não teve, até porque não o queria, como recusar a proposta do jovem advogado:

- Está bem, autorizo-o a procurar os meus pais e contar-lhes a verdade. Embora, apesar de estar, mesmo, inocente em todo este processo, tenha a certeza que meu pai não vai acreditar.

Lourenço fez questão de não se retirar sem que ela lhe explicasse do porquê de tal convicção:

- Não te preocupes com isso. O importante é que eu acredito em ti. Só espero nunca me vir a arrepender.

Foi munido da autorização de Letícia que o jovem advogado se apresentou em casa dos pais dela:

- O senhor doutor diz-me que acredita na minha filha e que a vai defender mesmo sabendo que ela não tem como lhe pagar? Ou será que ela lhe paga de outra forma?

Lourenço, já enojado com tudo quanto o pai de Letícia dissera a respeito da própria filha, não se conteve e disse-lhe:

- Sabe uma coisa, começo a pensar que o principal culpado de tudo quanto a sua filha está a viver, é o senhor.

- Eu! Como se atreve a insultar-me na minha própria casa? Olhe, o melhor é que se vá embora daqui para fora. Ainda lhe digo mais, se o senhor se quer embrulhar com ela, é problema seu. Para ela é que deve ser indiferente, mais um menos um, pouco lhe deve importar.

Os meses passavam, Lourenço ia reunindo provas atrás de provas.

- Senhor doutor, posso fazer-lhe uma pergunta?

- Claro que sim, se eu puder responder, respondo, se não, não. porquê?

- A verdade é que não tenho com que lhe pagar. Diga-me a verdade, sente-se atraído por mim, deseja-me? Eu sou mulher e tenho plena consciência que desperto cobiça nos homens, mas, ao contrário do que certamente o meu pai lhe contou, ainda sou virgem. Só mais uma coisa, sei que isto pode parecer uma leviandade da minha parte, mas não tenho problema algum em o confessar, estou apaixonada por si.

Lourenço sentiu-se atingido com tal manifestação de pura sinceridade:

- Não. Vou confessar-te uma coisa, nos primeiros tempos, também eu coloquei, a mim mesmo, essa questão, isto é, também vivi na dúvida, mas depois, com o passar do tempo, e com as conversas que fui tendo contigo, descobri que o faço por acreditar na tua inocência e quando decidi vir para advogado, jurei, a mim mesmo e a meu pai, que lutaria sempre pela justiça. Se no final de tudo isto, verificarmos que há algo mais, tudo se resolverá a seu tempo. Resumindo, aceitei defender-te, porque acredito nas pessoas e, tenho a certeza, se tivesses um pai digno desse nome, talvez nunca eu te conhecesse.

Lourenço conseguiu não só provar a inocência de Letícia, como também obter a confirmação de algo muito íntimo que ela lhe confessara, era virgem e assim se manteve até que decidiu entregar-se a ele, a escassos dias do casamento.

 

 

Francis D’Homem Martinho

17/11/2019

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