Nada de novo sob o sol
— J. A. Medeiros da Luz
Ah! O velho Sêneca, tão dado a consolações!
Vivesse hoje, argentário embora,
Com seu metódico discurso
De o mais estoico dos ascetas,
Montaria suas termas — sua tenda —
Com determinismo de engrenagens acopladas,
Naquele mais elegante bulevar
Incrustado em Beverly Hills, artéria
Por onde se escoam cédulas com a efígie
Do Franklin, não a daquele patife,
Que atendia pelo nome de
Tibério Cláudio César, et cetera.
E desandaria a lançar ao vento
Prospectos volantes,
De veículo aéreo não tripulado;
Reclames, lindamente ilustrados,
A conclamar — eu o pressinto, ó Sêneca! —
Os plutarcas do entorno a sessões
Da mais lídima psicoterapia de plantão,
Verdadeiro (que se nos permita o paralelo)
Bisturi de aço ao cromo niquelado,
Desentranhando as vísceras da alma.
E, caro Sêneca, se tal assim se der,
Que ao menos nos escute este conselho:
Queira avisar, sem a mínima tardança,
A sua progenitora, já viúva,
A pobre Hélvia, desconsolada ainda,
Que de lhe obrigarem, novamente,
A navalhar os próprios pulsos seus
Perigo não haverá, porque
(Que se assossegue vosso coração, ó Hélvia!)
Os detestáveis Neros do presente,
Tais dissimuladíssimos dinastas
— Azeitados na posse de carroçadas de
Ações em bolsas de valores, criptomoedas —,
São um tanto mais sutis e mais polidos;
Ouso afirmar, mesmo (diga-o a Hélvia),
Que são um bocadinho mais civilizados.
Ouro Preto, 6 de fevereiro de 2022.
[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]
[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@gmail.com © J. A. M. Luz]
Comentários
Obrigado, cara Margarida:
Mesmo com ser meio extravagante, fora dos mancais, este poema enfatiza o óbvio: os humanos se civilizam, mas, em sua essência, permanecem os mesmos, para o mal, ou para o bem.
Abraço; j. a.
Obrigado pela visita e apoio, cara Márcia:
Esses meus últimos poemas estão muito mais para ironia que para o romantismo. Entretanto, preconizam os manuais de estilo a conveniência de se mesclarem as modalidades, para se minimizar a sensação de sermos monotemáticos. Quero crer (ainda não é propriamente uma promessa, mas um anelo) que o próximo poemeto — arranjando eu a pachorra e o empenho necessário — há de ser suave, à vista e ao tato, como as pétalas da alamanda, desde que não mordiscadas (já que seu látex é veneno famoso).
Acendamos velas às musas, pelo óbvio, e outras tantas a Mnemósine, aquela inesquecível deusa da memória, pelo valimento no me fazer lembrar dessa quase promessa.
Abraço; j. a.
Pois é, Turma:
Eis-me cá novamente a escarafunchar amarelados papéis de gaveta, burilando-os e lixando-os com palha de aço, para arrastá-los para o jardim frontal da morada, convenientemente arvorando-me aderente àquela técnica do non finito, no resultado assemelhada àquela dos artesões (como se dizia em minha infância) de meia-tigela. Ou como se dizia na infância de meus finados pais: artesões "marca barbante".
Enfim, faz-se o possível. Por mais tosco e divorciado do realismo que seja o nosso golfinho rabejante de pedra-sabão, o que importa é que — feitos os devidos acoplamentos hidráulicos — possa esguichar (cheio de si em meio aos cravos, hortênsias e margaridas) seus jatos d’água, como qualquer chafariz cinzelado por um Donatello ou um Michelangelo da vida.
E vai neste caminho o presente poema, o qual aproveita reminiscências das leituras juvenis de clássicos para tecer paralelos no tempo, no que concerne a sua dimensão social. Paralelos que são, por si, o irônico realce do lentíssimo aporte da equanimidade nas coletividades humanas.
A ideia inicial do poema tem sua gênese na estranheza (para não dizer incômodo) que sempre me causou isso de Sêneca pregar os rigores do estoicismo a seus contemporâneos (e pósteros, afinal), sendo dos milionários de Roma. Olhando-se a distância, a atitude parece a de um marajá obeso, pregando a excelência moral da pobreza e do jejum...
Não quero parecer apocalítico, ou amargoso, feito novo Jeremias do século XXI. Mas, se é apropriado, como comumente se faz, conceber o nosso planeta como nave vagante pelo cosmo, nos damos conta de que uns poucos ficam a compassar os ritmos nos tambores, enquanto outros (não muito mais numerosos) conservam-se a estimular, com chibatadas nos lombos alheios, a multidão numerosíssima; essa uma sendo quantificada hoje aos bilhões de indivíduos, a perseverar remando, remando, suada, sem muito descanso, e desconhecendo o significado das palavras sonho e desiderato...
A continuar assim, essa nave acaba adernando além do ponto de não retorno e indo a pique.
Abraço; j. a.