Não se explica

Não se explica

 

Lourenço, ao ver-se sozinho na casa que idealizara para dar vida ao seu amor por Teresa, e na qual foram felizes durante quase quatro anos, sentiu-se desorientado, desencantado, desiludido, atraiçoado e sem vontade de nada, nem mesmo de continuar a viver.

Eram tantas as dúvidas que bailavam em sua cabeça que até já duvidava que Teresa se tivesse sentido feliz naquela casa, pois se o fosse, porque o trocaria por Leopoldo, logo Leopoldo, somente o seu melhor amigo, o mesmo Leopoldo a quem dera todo o apoio no seu processo de divórcio de Laura.

Lourenço não se sentia com forças para continuar a tocar naqueles móveis que comprara com tanto amor, por saber que eram os preferidos de Teresa, pelo que, nessa mesma noite, tomou uma decisão radical, apresentaria a carta de despedimento e quando estivesse livre de tal compromisso, rumaria à velha casa de família, situada nas encostas da serra de Montemuro.

Se assim o pensou, melhor o fez. Os seus patrões, tendo em atenção os argumentos apresentados e toda a consideração que sentiam por ele, dispensaram-no da obrigação de cumprir os prazos legalmente estabelecidos e permitiram-lhe que se fosse logo que tivesse passado o trabalho a outro colega.

Lourenço não perdeu tempo, na mesma tarde em que se despediu dos colegas de trabalho, correu para casa, arrumou algumas roupas na mala de viagem que tantas vezes o acompanhara nos seus passeios com Teresa, encheu a mala térmica, pois sabia que em redor da casa para onde ia, nada havia onde se abastecer. Após cerrar todos os estores, desligou água e luz, trancou a porta e colocou-se a caminho do seu novo mundo, nem sequer o portátil quis levar consigo, pois o que mais desejava, era mesmo isolar-se do resto do mundo, somente o telemóvel e por uma questão de prevenção para alguma urgência.

Os primeiros dias no seu novo paraíso, passou-os a saborear a paz, a tranquilidade, o sossego e o silêncio, sobretudo o silêncio. Aquilo que há pouco tempo lhe parecia um desperdício ali perdido no meio da serra, tornava-se no seu bem mais precioso, agradecendo a seu pai por nunca lhe ter dado ouvidos nos seus inúmeros argumentos para que vendesse aquela velha casa.

Foi já depois de passados bastantes dias de isolamento, e de completa inércia, que se sentiu com vontade de transformar o abandonado terreno que circundava a casa, num jardim. Ia no seu 2º dia de volta ao trabalho, ao seu ritmo e de acordo com o projecto por si idealizado, já não por amor a qualquer outra pessoa que não ele próprio, mas que sabia sempre fora um sonho de seus falecidos pais, transformar aquela casa num cantinho onde pudessem passar o resto das suas vidas, sonho esse que uma curva da morte, havia pouco mais de um ano, impedira de concretizar, que se começou a sentir acompanhado.

A princípio pensou que talvez fosse uma simples invenção de sua cabeça, talvez provocada pela sensação de liberdade que todo aquele isolamento lhe proporcionava, mas não. Dia após dia, mal abria a porta de casa, lá estava o melro à sua espera. A ave começara por ali ir em busca de água, depois habituou-se a debicar a terra que Lourenço ia remexendo e com isso foi-se começando a aproximar do rapaz. O facto de nunca se ter sentido ameaçado, deve ter-lhe transmitido confiança, pelo que não espantou que passasse a deixar-se ficar a observar Lourenço no seu dia-a-dia.

Passados alguns meses, Lourenço entendeu que não fazia qualquer sentido continuar a manter o apartamento de Lisboa, o seu futuro nunca mais passaria pela capital, pelo que decidiu deixar o seu refúgio e ir providenciar a venda do mesmo.

A estadia foi muito mais curta do que esperava, visto que não faltaram interessados em o ajudar a cortar os laços com a grande cidade, pelo que ainda não tinham passado quinze dias e já ele estava de regresso à sua nova casa.

Foi ao dirigir-se para a porta de entrada, que sentiu o coração a apertar-se no interior do seu peito, ali caído em pleno chão, mesmo junto ao banco onde costumava sentar-se ao fim do dia, estava o seu amigo melro. Parou o carro, saiu do mesmo e correu até junto da pobre ave, vendo que esta ainda vivia, embora estivesse prestes a despedir-se da vida. Agarrou o amigo com todo o cuidado, levou-o até junto do lago que construíra no centro do novo jardim e começou a molhá-lo com todo o carinho, reparando como a ave ia reagindo aos estímulos provocados pelos pingos de água sobre as suas penas. A reacção do melro incentivou-o a não desistir e não demorou muito até que a ave começasse a tentar pôr-se de pé. Assim que o sentiu já em condições de se manter de pé, foi ao carro, retirou um pão que comprara na viagem, partiu-o ao meio, retirou algum miolo, esfarelou o mesmo na palma da mão e ofereceu-o ao seu fiel amigo.

Quem se deixar perder pelos encantos da serra de Montemuro e for dar à casa de Lourenço, não se admire por ver um robusto rapaz a tratar de um belo jardim e, pousado num poleiro construído de propósito para si, um lindo melro a apreciar todo o carinho com que ele o faz.

 

Francis Raposo Ferreira

29/10/2019

Enviar-me um e-mail quando as pessoas deixarem os seus comentários –

Para adicionar comentários, você deve ser membro de Casa dos Poetas e da Poesia.

Join Casa dos Poetas e da Poesia

Comentários

  • Tomadas de atitudes em horas certas e necessárias podem ser providenciais em momentos urgentes.

    Aplausos, Francisco.

    Parabéns!

This reply was deleted.
CPP