Novos Contos de Natal da Matilde 2019

 

19 - Um Inverno de fome

 

-Avô, com este temporal, não és capaz de inventar uma história, bonita, que fale daqueles invernos que tu dizes que havia nos teus tempos de criança?

O avô olhou para a neta, pensando lá para com ele: Esta miúda é mesmo esperta, vejam só do que ele se foi lembrar para me levar a contar-lhe uma história mesmo ao jeito que ela gosta, ou seja, uma história que fale da vida real.

- Está bem. Aceito o desafio.

 

Aquele inverno estava a revelar-se de fome, os nevões prolongavam-se por tantos dias seguidos como já ninguém se lembrava de ter acontecido nos anos mais recentes.  Quando as neves resolviam dar algumas tréguas àquelas gentes já de si tão parcas em meios de subsistência, logo as chuvas, mas umas chuvas tão fortes que ninguém se atrevia a enfrentá-las, se faziam sentir.

Dia e noite, chovia constantemente, quase sem parar, havia já algumas semanas. O mês de Dezembro ia sensivelmente a meio e tudo indicava que a chuva, o frio e a neve, tinham vindo para ficar por mais tempo.

O mau tempo obrigava as pessoas a ficarem por casa, sem poderem ir tratar dos campos, ou levar os animais a pastar, pelo que era perfeitamente normal que em muitas das casas da aldeia, apenas se comesse o que tinha sido possível ir guardando ao longo dos meses de primavera e verão.

Apesar de serem pessoas habituadas a muitos invernos bastante rigorosos, a verdade é que não havia em toda a aldeia, quem se recordasse de nenhum tão rigoroso como aquele.

As reservas de muitas das famílias, resumiam-se, na maior parte das vezes, a batatas, massa, arroz, e alguma carne salgada, a qual também precisava de ser consumida com bastante moderação, pois caso contrário poderiam ficar reduzidos aos restantes três ingredientes, além do pão, amassado e cozido entre as paredes de cada uma das casas.

Num dos extremos da aldeia viviam duas famílias, que embora ainda estivessem ligadas por alguns laços de familiaridade, há muitos anos que andavam de relações cortadas, isto é, não só não se ajudavam entre si, como nem sequer dirigiam palavra uns aos outros, eram os Nunes e os Correia, cujos muros dos quintais, encostavam um ao outro.

Era essa proximidade entre as duas habitações que permitiria, a quem não o soubesse, num simples passar de vista, verificar que se tratava de duas famílias cujas condições de vida deveriam ser bastante desniveladas, pois mesmo descontando a probabilidade de se tratar de simples maneiras distintas de encarar a vida, era fácil ver como a casa da família Correia denotava tratar-se de gente com evidentes posses monetárias, enquanto a casa da família Nunes denunciava dificuldades muito mais acentuadas e não simples desinteresse pelo aspecto exterior da mesma.

A primeira tratava-se de uma casa de dois pisos, construída em tijolo e cimento e muito bem pintada, enquanto a da família Nunes era a genuína, ainda em adobe e telhado sem tipo de forro algum, pelo qual deveria entrar mais frio que o calor que a velha lareira conseguia debitar.

Os Correia nunca conseguiram perdoar o facto de os Nunes terem recusado vender-lhe uma parcela de terreno que lhes permitiria ampliar, ainda mais, a sua casa.

Neste maldito inverno, nem as belas frutas que eram o orgulho dos Correia resistiram, frutas essas que ano após ano, apodreciam nas árvores, pois eles não só não as apanhavam como se recusavam deixar que os familiares, com duas crianças, as apanhassem.

Só que neste inverno, ao contrário do que todos na aldeia poderiam esperar, até os Correia se viam a braços com o problema da fome, pois sem terem campo algum onde semeassem fosse o que fosse, as suas reservas só podiam vir da pequena mercearia da aldeia.

O chefe da família Nunes vinha à porta da rua, espreitava o tempo, abria muito a boca ao vento e recolhia-se, não sem antes se atentar no parente Correia que também o observava e lhe dizia, entre dentes, da porta da sua casa:

- Então, a palha ainda não está a boiar em tanta água?

O mau tempo persistia em ficar e um dia o Nunes, já farto de estar fechado em casa, arriscou ir até à taberna. Fosse porque não contavam a sua presença, ou até mesmo de propósito, alguns dos homens ali presentes não se inibiram de comentar:

- Vocês sabem que o Correia anda a passar um mau bocado, pois além de ter a mulher bastante doente, parece que já nem têm que comer.

- Pois é, preocupou-se só em construir um lindo jardim e não em semear que comer. Tivesse apanhado a fruta e talvez agora lhe valesse. E olha que isto não está nada animador, a ti Amélia já não tem quase nada que vender na mercearia.

- Pior do que isso, nem a apanhava e nem deixava o pobre do Nunes apanhá-la para as crianças.

Nunes não se pôde conter e disse:

- Meus amigos, o Correia não tinha nada que me dar a fruta, eu nunca lha pedi, tal como eu nunca lhe vendi as minhas terras porque ele nunca me propôs comprá-las.

Dito isto, Nunes abandonou a taberna e, sem vacilar, dirigiu-se a casa do familiar, accionou a pequena maçaneta em forma de mão e aguardou:

- Bom dia, o que é que queres daqui? Se é comer, vai apanhar o que semeaste nas terras que nunca me vendeste.

- Quero apenas dizer-te que não ignoro que nunca gostaste de mim e dos meus, talvez eu também nem goste de ti, mas há uma coisa que quero que saibas, nada deste mundo me fará deixar de ser como sou, e se há uma coisa que não suporto é saber que alguém tem fome. Em minha casa, podemos não ter os mesmos luxos que há na tua, mas fome, não se passa.

- Que dizes tu? Sabes lá do que falas, tu vens-me falar de fome quando até a chuva te entra pela casa dentro.

- Ouve, tu podes pensar o que quiseres, mas não tens o direito de negar que eu ofereça uma refeição digna à tua mulher. Podes ser orgulhoso e não aceitar a minha ajuda, mas não tens o direito de impedir que eu ajude uma mulher doente. A minha casa pode ser pobre, mas ainda me resta um prato de sopa para ti e para a tua mulher, se não quiseres o teu, isso já não é problema meu.

Correia não teve coragem de negar.

Nunes aguardou que ele se calçasse e o acompanhasse até sua casa, onde disse à esposa para arranjar um bom tacho de comida quente para os seus parentes:

- Nunes, diz-me uma coisa, porque é que nunca respondeste às minhas provocações

- É simples, tu preocupavas-te com o exterior da tua casa, um lindo jardim, bonitas árvores de fruto, que nunca apanhavas, pelo que sou levado a acreditar que só querias mostrar-te aos outros, eu fui deixando a minha casa como estava por fora, enquanto a ia melhorando por dentro.  Diz-me uma coisa, para quê tirar as velhas paredes e o velho telhado se até ajudavam a proteger a nova casa.

- Percebo, eu preocupei-me com o exterior e tu com o interior.

- Talvez.

- Há outra coisa que não percebo, porque te preocupaste comigo?

- Eu não me preocupei contigo, só te quis recompensar pela ajuda que me tens dado ao longo de todos estes anos.

- Como assim? Eu ajudei-te em quê?

- É fácil, se tu não tivesses aquele jardim tão bonito aqui mesmo junto à minha casa, a minha mulher sentir-se-ia mais triste e eu iria ficar preocupado, assim, ela deliciava-se a admirar o teu bonito jardim e eu podia dedicar o meu tempo ao trabalho. Ou seja, enquanto tu lhe oferecias um bonito jardim mesmo em frente à nossa porta, eu ia arranjando condições cá dentro.

 

Moral: Quem só se preocupa com o exterior, acabará por desmoronar-se de dentro para fora.

 

- Boa avô, esse homem, tenho a certeza que era teu amigo, era um homem muito inteligente.

 

Francis D’Homem Martinho

19/12/2019

 

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Comentários

  • Belíssimo conto!!! Parabéns Francis!!!

  • 14734260?profile=RESIZE_710x

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