O Peso das Asas

O Peso das Asas

 

Na gaveta mais escondida do armário, repousava um velho caderno de capa azul. As páginas amareladas guardavam segredos escritos com tinta desbotada, um relicário de desejos que um dia pulsaram vivos no peito. Eram sonhos anotados com entusiasmo, como quem escreve cartas ao futuro.

"Viajar pelo mundo", dizia a primeira linha. Havia um mapa desenhado ao lado, com setas apontando para Paris, Tóquio, o deserto do Saara. Mais abaixo, uma lista de lugares que nunca deixaram de ser apenas nomes num papel. O tempo, sempre apressado, passou por cima dessas intenções como um rio impiedoso.

"Aprender a tocar piano", dizia outra página, decorada com pequenas notas musicais desenhadas à mão. Mas o piano nunca chegou. Ficou sempre como um eco distante, como se as teclas estivessem lá, esperando por dedos que nunca as tocaram.

E assim, cada página contava uma história de asas que não alçaram voo. Não por falta de desejo, mas pela dança imprevisível da vida. Houve contas a pagar, amores para cuidar, doenças que interromperam sonhos e noites tão cansativas que o dia seguinte parecia apenas uma extensão do anterior.

Mas, em meio à nostalgia, uma verdade se revelou: aqueles sonhos não realizados também tinham o seu papel. Foram eles que mantiveram acesa a faísca da esperança, que empurraram a rotina para frente, mesmo quando os passos eram pesados. Cada sonho guardado não era um fracasso, mas um lembrete de que o coração continuava vivo, capaz de desejar.

E, talvez, não fosse tarde demais. As viagens poderiam começar na própria cidade, explorando lugares desconhecidos. O piano poderia ser substituído por um violão barato ou até mesmo por cantorias solitárias no chuveiro. Sonhar não tinha prazo de validade.

O caderno azul foi fechado com cuidado, mas desta vez não voltou para o fundo da gaveta. Ficou à vista, na mesa da sala, como um companheiro à espera. Não mais como uma lista de cobranças, mas como uma inspiração. Afinal, o peso das asas não está em sua falta de uso, mas em esquecer que ainda podemos abri-las.

Helena Bernardes

dezembro, 2024

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Helena Bernardes

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Comentários

  • Meus siceros aplausos e suspiros. maravilhoso; Deus a abençoe

  • Maravilhoso;!!!

    Tua inspiração é muito fértil, Helena. Parabéns.

    DESTACADO 

    Bjs 

  • Helena 

    Ficou ótimo 

    Até tive a impressão que éra o meu velho livro de poeta

    Parabéns 

    Um abraço 

  • Oi Helena!

    Sua inspiração é inacreditável!

    Digna mesmo de uma extraordinária escritora.

    Este conto é um tesouro literário que captura a essência do tempo e dos sonhos humanos.

    A maneira como os desejos anotados ganham vida nas páginas amareladas,

    como um relicário de aspirações,

    é profundamente tocante.

    A transição das intenções para a realidade de cada página

    mostra a imprevisibilidade da vida e a beleza dos sonhos não realizados.

    A revelação final,

    de que sonhar não tem prazo de validade,

    é uma mensagem inspiradora e reconfortante.

    Um lembrete poético de que sempre há tempo para redescobrir nossas aspirações

    e transformar o ordinário em extraordinário.

    Simplesmente belo!

    Parabéns!

    👏👏👏👏👏👏👏👏👏.

    #JoaoCarreiraPoeta.

  • Belo e construtivo texto. FELIZ SEMANA e já antecipo votos de um FELICISSIMO NATAL entre seus entes queridos. Abraços

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