Pertinácia

Pertinácia

 J. A. Medeiros da Luz

 

Quão enlevado moço existia

Nos fotogramas embaçados do passado!

Que dádivas do altíssimo almejava,

Em meio à peregrinação a iniciar;

Novo Aasverus, errante — por destino,

Não por irrisão ao Nazareno?

 

Se inda nesses dias atuais, que correm, correm

— Despóticos, dissuasores, distópicos, disfêmicos —,

Persevera a remar para montante,

Por entre mururés e troncos à deriva,

Feito o Guesa, errante por escolha?

 

E com a irracionalidade da tarefa

Dum Sísifo, já sem reinado na Tessália,

Rolando monte acima, reiteradamente,

O seu pedralhão limoso e bojudo,

Crê que há gota de esperança em toda lágrima.

 

Marcha feito calejado prospector, esperadiço,

Garantindo a si próprio bamburrar — ali! — naquela

Curva pedregosa do ribeiro, recheada

De ouro a lhe chamar, nos interstícios,

Há, mesmo, lhe parece, alguns milênios.

 

Altivamente ereto,

Lá segue escanchado em seu burrico,

Aquele avelhantado tropeiro, sem descanso,

Embora desmunido de tropa e com suas

Bruacas laterais abarrotadas

De penumbras, de vendavais e de silêncios.

 

Afinal (todos se indagam, atarantados,

Ansiando por bisturi com o qual possam

Desentranhar-lhe as vísceras da alma),

Quão deslumbrado o moço existia

Nos fotogramas embaçados do passado?

 

 

 

Ouro Preto, 18 de setembro de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[© J. A. M. Luz; comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com ]

 
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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • Pessoal:

    Aquelas grandes perguntas que nos fazemos, como cristalização de nosso finalismo subjacente — inerente que é ao Homo sapiens —, não raro se insinuam como mote para a inspiração com ares beletristas…

    Quem fomos e quem seremos? É a retomada do dilema levantado por Heráclito de Éfeso: o rio que corre hoje é o mesmo rio que corria ontem? Ou, equivalentemente, por Plutarco, perguntando se — após hipotética viagem de 50 anos, tendo sido trocadas todas suas peças no decurso do itinerário —, a nau de Teseu será a mesma que saiu do porto? O poema acima, embora adstrito ao âmbito de sua mesma irrelevância, como que se debate com essas perguntas essenciais, para as quais a modalidade da resposta selecionada leva a visões de mundo diferentes. Enfim, tem, ao menos, o mérito de levantar o lodo do fundo do Mar do Oblívio, deixando à mostra, para mergulhadores de maior competência, a reluzência das paredes doiradas das ânforas do naufrágio, que esperam, plenas de mistérios e tesouros, o seu resgate após milênios...

    Abraço deste filósofo de roda de dominó, j. a. 

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