Sátiro estoico e angelical

Sátiro estoico e angelical

J. A. Medeiros da Luz

Naquele enorme pátio escuro ao lado

— Em sombras imersa a sua carroça —

De taverna esquecida (há pouco cheia),

Um cigano brioso nos contou

(Quintiliano, ele disse, se chamava),

As suas aventuras, seus amores,

Suas inquietações, e seus anelos,

Mal disfarçando o etanol no hálito.

 

E muito suspirou ao relembrar

A endeusada garota de seus dias

Primaveris, que — flor e espinho sendo —,

Na bruma do passado escafedeu-se,

Deixando-lhe cardume de incertezas,

Dúvidas, borboletas levianas,

A voejar, doidivanas, nas lembranças

Daquela trepidante juventude,

Já um bocadinho (nota-se) distante.

 

No meio do falar mudou-lhe a voz

E com brilho soturno na visão

(A luz do poste nos deixava ver),

Num hesitar, enfim, nos confessou,

Suplicando — por Deus! — nosso silêncio,

Ser mais um deserdado do destino,

Que, bem anteriormente a esse amor,

Lá no esplendor da glória, se chamou

Visconde de Anemúria e Varzim.

E branquejou de súbito a lua,

Que estivera a ouvir, atrás de nuvens;

Alçando olhos úmidos ao céu,

Mirou-lhe num sorrir doce e sem fim.

 

Ouro Preto, 18 de janeiro de 2022.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@gmail.com © J. A. M. Luz]

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J. A. M. da Luz

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Comentários

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    • Grato, caro Sustelo:

      Talvez esse verniz passadista que exala deste poema seja, um pouco, decorrência da vivência de minhas retinas. Embora não resida propriamente no núcleo histórico da cidade,  a paisagem do século XVIII que é [Vila Rica de] Ouro Preto, acaba por nos fazer esquecer, por instantes, das megalópoles destes tempos que correm. Arruamentos tentaculares, com suas edificações de vidro espelhado e helipontos nos altos terraços, estampando, nos flancos, as telas decamétricas de grafeno dos painéis publicitários, em meio ao tráfego insano.

      Abraço; j. a. 

  • Sensacional! Parabéns J.A.Encantada!

    • Cara Angélica, seus comentos e visita sempre são estimuladores.

      Apesar deste personagem ser alegadamente cigano, lembrou-me mais os romanticões byronianos que a tuberculose acabava por arrastar, muito antecipadamente, para esferas mais amplas, entre uma estrofe dolorida e outra.

      Lembra até mesmo a súmula dos percalços biográficos do Coisinha (Le Petit Chose, de 1868), alter-ego adolescente de  Alphonse Daudet, mero joguete passional, sobrevivendo nas águas-furtadas, à mercê dos caprichos de atrizes mais vividas dos cancãs, naquela (para muitos) inebriante Paris de fim de século.

      Perdoe-se, nesses exemplos fornecidos, o viés para  aquele eurocentrismo de que padecíamos (ou padecemos ainda?), e do qual Euclides da Cunha, com a visão de seu Brasil Profundo, Lobato, e, por fim, os modernistas (ficando eu sem explicitar, por concisão, vários outros pioneiros) vieram nos arrebatar...

      Abraço; j. a.

  • Sensacional! Gostei demais.

    Parabéns,J,A da Luz.

    Um abraço

     

    • Agradecido pela visita e apoiamento, cara amiga Márcia. 

      Não sou muito dado a enovelamentos ficcionais; a mim me parece que a realidade seja mais intrigante e instigante que a ficção. Mas, por vezes, é uma tentação pincelar com água as fronteiras cromáticas da aquarela, tornando os limites um tanto fluidos. Uma tentativa tacanha de mimetizar, como os polvos de fundos arenosos dos atóis...

      Abraço; j. a.

  • Pessoal:

    Eis um poemeto que, curiosamente, parece ter sido ejetado com roupagem antiga, delineado com a caneta (afinal de ponta porosa) sendo molhada (guardadas as proporções!) no tinteiro de  E. T. A. Hoffmann, ou de T. Gautier, com os seus mundos de romantismo fantasmagórico. Era uns retalhos guardados na gaveta, juntados canhestramente (em que pese os decassílabos), pelo escriba que ora digita...

    Poderíamos classificá-lo, já que — desde Linné e Cuvier — vivenciamos verdadeiro furor taxonômico (talvez para dar ares de certeza às nossas incertezas...), poderíamos categorizá-lo na classe das reminiscências não vividas, ou das mentiras muito plausíveis...

    Enfim, quem há lá de entender o que as vilosidades e dobramentos do neocórtex acabaram por desencadear nas caixola dos humanos? Lombroso e mais sua turma falharam, cabalmente,  tentando responder a esse tipo de pergunta.

    Abraço; 

    j. a.

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CPP