Sem a esvoaçante túnica da fantasia

Sem a esvoaçante túnica da fantasia

J. A. Medeiros da Luz

Vincit qui se vincit” — provérbio latino.

 

Perdoai, amigos, ao dublê de vate,

Com um quê de trôpego na marcha,

Mesmo que se nos coagulem os miolos,

Pela iconoclastia sobre nossos mitos;

Cutucando (arrojadiço!) um vespeiro,

Ele nos convida a que miremos

A verdade desnuda, em pelo,

A emular fotos indiscretas,

Se for certo que aceitemos,

Dos preceitos do demônio (esse coiso!),

Que a carne enferma é, e frágil.

 

E isso dito, digo mais um pouco.

Aninha, em moça, era assaz namoradeira:

Maridos alheios lhe ouviram récitas.

O Carlos, aquele, passava em revista

Fila de Dulcineias... del Toboso, do Arrudas

(Mas perdendo para o Braga no merecer

Do Prêmio Motel de Literatura).

 

Difícil crer até na incômoda verdade,

Mas o pivete do Rimbaud, afirmam,

Traficava seres humanos em África

— E dizendo que, por delicadeza, perdera a vida...

 

Excelsos poetas, dúvidas não restam.

Haveriam, pois, de ter por meta

O usufruir, da parte de seus pósteros,

Do rótulo de equânimes com aquelas

Almas outras: dos pares, de terceiros?

 

Inda nestes tempos malucos

De sensata esquizofrenia coletiva,

Nisso não cremos, mas em que — se tanto —

Miravam benévolos verbetes biográficos,

Complacentes no quesito “vida pessoal”.

 

Ora vide, por conseguinte,

Damas e cavalheiros que tal ledes,

Como pulsam,  afinal, os ímpetos

De hormônios nas artérias dos mamíferos,

A que chamais humanos.

 

Faunos  cálidos fruindo esses trópicos,

A cujos próceres de gênio, inexpugnáveis,

Vós outros  cantais altivos hinos, reverentes,

Privativos dos veramente imaculáveis

Querubins, anjos, santos, serafins.

 

Ouro Preto, 04 de fevereiro de 2022.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@gmail.com © J. A. M. Luz]

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • Magnífica inspiração!!!!

    Lindo demais!!!

    Parabéns. 

    Abraço

    • Cara Márcia Mancebo:

      Agradecido por sua cortês visita ao sotãozinho do Jota. Esse, e mais o outro ulteriormente postado aqui, são poemas que me causam um certo desconforto, visto bulirem com coisas que, no fundo, não são da minha conta. Cada um que encaminhe a sua trajetória, seu destino, como bem lhe parecer.

      Até porque, em geral, nosso pacote particular de insuficiências comportamentais (ponhamos assim) não nos credencia a juízes das insuficiência alheias. O suave Nazareno, em suas lições consubstanciadas por ações (mais que por palavras), bem elucidou isso, com o desafiar a atirar a primeira pedra (sobre a mulher desventurada) aquele que fosse isento de faltas.

      Mas por vezes, sucumbindo, acabamos acrescentando, no somatório de faltas pessoais, umas picardias, umas caçoadas, uns maldizeres enfim.

      Abraço; j. a.

  • Um velho amigo, lendo o poema em tela, distraiu-se com o andamento dele, buscando pistas de Ariadne, e não reparou na óbvia alusão do título ao nosso grande Eça de Queiroz, com aquela sua frase magistral: "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia." Que fique, pois, desnudada mais essa confidência (a qual acaba se inserindo na categoria dos segredos de Polichinelo).

  • Pessoal:

    Poderia atribuir a este poema a classe taxonômica de “poema incômodo”, pelo bulir no enxame de marimbondos irascíveis, guardiões de nosso panteão, guardiões que somos nós mesmos, os humílimos mortais, os zé-povinhos que sobrelotamos este planeta — e que, nada raro, entramos em guerras insanas pelos nossos mitos. Mas a verdade é que todo colosso tem, se não as patas de barro,  ao menos outras dispersas imperfeições, que não tiram de modo algum o lustre de seus belos predicados...

    Assim, escolhi somente um infinitésimo de exemplos, vindos quase espontaneamente à memória, de pequenos detalhes pouco comentados pelos vasculhadores de figuras literárias de proa, que podem (e talvez devam) passar, na verdade, por eventos hipotéticos de hipotéticos (mas arquetípicos) personagens.

    Afinal de contas (e esta é a mensagem), deixemos essas perfeições miríficas somente para os entes citados no derradeiro verso deste poema estrambótico, algo desarmônico como motor a explosão interna a bater bielas,  pelo uso. Em resumo, tenhamos por certo que — por minúsculos que sejamos — não carece ser grande para ser vencedor. E nossa magna peleja, aquela contra nossas próprias fraquezas, é luta dura e continuada. É como lá diziam os pragmáticos romanos: “Vence, o que se vence”.

    Abraço; j. a.

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