Ti Chico

 

Ti Chico

 

Ti Chico estava prestes a dar por terminada a tarefa que tinha entre mãos, quando ouviu a sua Ana, a única rapariga dos quatro filhos:

- Pai, pai!

- Que foi minha filha?

- Venha cá depressa.

- Calma, minha filha. Acalme-se e conte lá a seu pai o que se passa.

- Pai, está ali à porta um homem com muito mau aspecto e a mãe está cheia de medo.

Ti Chico compreendeu que algo de estranho se passava, pois além de não ser habitual que alguém aparecesse por ali, visto viverem num local ermo e longe, bastante longe, da aldeia mais próxima. Sem nunca o confessar à filha, Ti Chico ia pensando na melhor maneira de lidar com a situação. Se por um lado sabia que tinha de agir de acordo com o que sempre ensinara aos filhos, isto é, nunca julgar os outros só pelas aparências, por outro lado também não queria agir de modo a poder colocar os seus em risco, caso se tratasse mesmo de alguém com más intenções.

Após pensar por alguns segundos no modo que lhe parecia mais correcto de agir, disse à filha:

- A minha filha vai ficar aqui a tomar conta do trabalho que o pai estava a fazer, enquanto eu vou lá falar com o homem e ver o que é que ele quer daqui.

A menina, sentindo-se importante por o pai lhe confiar a guarda do seu próprio trabalho, nem sequer se apercebeu de como ele pretendia ficar a sós para poder agir de acordo com o seu bom senso, mas sem ir, ainda que pouco, contra aquilo que sempre lhe ensinara, a ela e aos irmãos. Assim que se furtou ao olhar da filha, Ti Chico agarrou na forquilha com que costumava juntar a palha da cama dos animais e lá foi ao encontro do inesperado visitante. Reparou logo que se tratava de um homem ainda bastante novo, sem o dar a perceber, olhou em redor, na tentativa de avaliar a situação, ou seja, a possibilidade de haver mais alguém escondido, ao mesmo tempo que verificava como a esposa se encontrava no interior de casa, certamente de porta trancada:

- Bom dia. Posso ajudá-lo nalguma coisa?

- Bom dia. Peço desculpa por aparecer assim sem mais nem menos. Agradeço a sua boa vontade, mas a única coisa que precisava, já tenho, água para matar a maldita sede que este calor abrasador me fez sentir.

- Que faz por aqui? Anda perdido ou quê? Isto é o fim do mundo, passam-se meses e meses sem ninguém aparecer por cá.

- Calculo. Antes de mais quero pedir-lhe desculpa por ter assustado os miúdos, o que até acho normal, pois devo estar cá com um aspecto.

- Não se preocupe. Afinal o que o trouxe até aqui?

- Eu sou ourives. Saí ontem de manhã da Vidigueira, a caminho de Beja, e, quando estava aqui já bem perto, um dos pneus furou. Como deve saber, ontem estava um sol ainda mais danado que hoje, mas mesmo assim ainda pensei em substituir o malvado do pneu, só que o suplente também estava vazio. Descuido meu, tenho de o reconhecer. Fiquei completamente desorientado, por um lado tinha medo de abandonar o carro com toda a minha vida lá dentro, por outro lado tinha medo que a noite chegasse e eu me visse ali perdido naquela maldita estrada onde nem um carro passa.

- Então e como resolveu as coisas?

Ti Chico, embora não o demonstrasse, mantinha-se em estado de alerta:

- Olhe, assim que começou a escurecer, fui empurrando o carro até que o consegui esconder atrás de umas moitas que por ali há. Estava tão cansado, que decidi descansar um pouco, tranquei-me dentro do carro e lá passei a noite. Esta manhã, ao acordar, vi o fumo a sair da chaminé da sua casa e decidi vir pedir-lhe que me ajude.

Ti Chico, acreditando nas palavras do homem, mas sempre vigilante, convidou-o a entrar em casa, não só para comer alguma coisa, como também para analisarem o assunto e tentarem encontrar uma solução para o mesmo.

A esposa de Ti Chico, após ouvir os argumentos do marido, lá se decidiu a destrancar a porta.

Foi depois de o homem saciar o apetite e lavar o rosto é que se sentaram a estudar a melhor maneira de Ti Chico poder ajudar o ourives. Iriam no tractor do anfitrião, rebocavam o carro até ali ao monte, reparavam um dos pneus e o homem poderia seguir viagem. Acabariam por reparar os dois pneus, não fosse ele ter mais algum furo até chegar a Beja e só então o ourives se foi de partida, prometendo-lhes que, sempre que voltasse à Vidigueira, os iria visitar.

Assim que viram o carro perder-se para lá da curva do eucalipto grande, a esposa virou-se para Ti Chico:

- Bem, ele quase que nem agradeceu. Se calhar nem é ourives nenhum. Vais ver que nunca mais cá aparece.

- Claro que é ourives. O homem tinha alguma necessidade de mentir?

- Por acaso viste-lhe o ouro?

Ti Chico virou-lhe as costas e foi acabar o trabalho que deixara por concluir na véspera. Para a esposa era o sinal de que não vira ouro algum.

Os meses foram-se passando e do ourives nunca mais tiveram sinal algum de vida, o que levava a esposa a dizer ao marido:

- És sempre o mesmo, acreditas em tudo o que te dizem.

- Oh mãe, o pai pensa que são todos como ele. Que mal tem isso?

Certo dia, quando a história da visita do ourives já se esfumara no tempo, viram chegar um bonito carro, ainda a brilhar de novo, o qual parou a escassos metros da porta de casa:

- Bom dia. Procuro o Ti Chico. Desculpe trata-lo assim, mas foi como o meu pai sempre falou do senhor. Ah, desculpem, nem me apresentei. Eu sou o filho do ourives que aqui veio à procura de ajuda.

Ti Chico olhou para a esposa e perguntou ao bem vestido visitante:

- E seu pai, que é feito dele?

- Infelizmente, aquela foi a última viagem de meu pai. Teve um ataque de coração e não conseguiu resistir. Mas ainda teve tempo para me pedir que lhe entregasse esta caixa que, segundo ele me disse, é sua por direito.

Nessa noite, após se despedirem do filho do malogrado ourives, Ti Chico, esposa e filhos, nem queriam acreditar no que viam. A caixa continha um fio de grossa malha de ouro para cada um deles, bem como um valioso relógio para todos eles.

Ti Chico, sem pronunciar palavra, limitou-se a olhar para a esposa e dirigir-lhe um sorriso, cujo significado as crianças logo decifraram:

 

“Nunca te arrependas de ajudar o próximo, mesmo sem saberes quem ele é.”

Francis D’Homem Martinho

27/10/2019

 

 

Francis Raposo Ferreira

2013

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Comentários

  • Precioso texto, poeta Francisco.

    Na atualidade existe um grand eproblemas nesta questão, é que muitas vezes quem te pede ajuda, é o mesmo que atenta contra você.

    É preciso se tomar certos cuidados, nos tempos atuais.

    Aplausos!

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CPP