Uma ficção - Purgatório

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Uma ficção: Purgatório

Sonhei que morri e estava no céu.

Ah, não, não. Corrijo. Não era o céu não, posto que no paraíso – isso é voz corrente – tudo é bonito demais, na suavidade de etérea música clássica e anjos esvoaçando diáfanos por toda parte, em meio aos felizardos humanos que se salvaram, num interminável piquenique em relvas cortadas por riachos cristalinos, ladeados pela vegetação frondosa.

No meu sonho, não era exatamente assim o lugar e se fiz a confusão inicial é porque estou certo de que não se cuidava também do inferno – nem é preciso mais acurada descrição – sendo uníssona e bíblica a notícia de que o inferno é a casa da perdição, vale dizer, uma fogueira medonha com labaredas avermelhadas e espíritos se contorcendo em meio à gritaria e gargalhadas do diabo, perverso anfitrião.

Bem, então devia ser o purgatório esse estranho lugar, embora eu sempre imaginasse que no purgatório se sofresse também, por expiação redimível, em menor proporção, como um tipo de castigo, desses que a gente aplica às crianças. Mas ali não era assim. Vi um lugar calmo, tranquilo, quase desabitado. Ou nem tanto, que aos poucos me dei conta de vultos solitários, contemplativos, sentados em bancos longos numa alameda interminável.

Se estavam no purgatório, não aparentavam as dores da contrição e tampouco as auras da esperança e alegria de quem a qualquer hora, nunca tardia, se veria transferido ao Éden, mais ou menos como naquelas máquinas do tempo do cinema hollywoodiano. E parecia-me certo de que era a única destinação nos planos de quem comanda os destinos, porque do inferno já tinham todos eles se eximido.

Com essa constatação, suspirei aliviado e passei a caminhar pelo local e a tentar contato com seus taciturnos ocupantes, mas não respondiam aos meus acenos. Notei que não havia criança alguma e não me surpreendi: criança que parte para o plano eterno é sempre vítima de alguma violência, intencional ou não, e inegavelmente terá imediata acolhida no reino celestial.

Também não avistei adultos em andrajos, desnutridos, assim com o conformismo dos moradores de rua que, quando eu era vivo, avistava na rua e muitas vezes me desviava. Será que, por essa condição, eles também, como as crianças, seguiam direto para o paraíso? Matutei, em meu sonho: Deus comanda o Universo e os destinos dos homens. Evidente que os desgraçados da sorte humana não são lançados ao inferno e é de se crer que nem o diabo os queira, porque o satânico deve ter predileção pelos que vivem com pompa, os perdulários e insensíveis, os egoístas, os hipócritas.

Ah, recordei-me, é verdade, de que vez ou outra eu até socorri alguns desses infelizes excluídos e indigentes. Mas, nesse instante do sonho bateu-me um estalo e dei-me conta de que talvez esse gesto meu, mesmo frágil e tímido, tenha sido a causa da minha vinda ao purgatório e a garantia que do inferno já me livrara...

Assim, com esse esforço mental... acordei. Permaneci imóvel, recolhido, meditativo. O sonho, acredito, foi um alerta, a me sussurrar: - O fim se aproxima. Que caminhos vais percorrer em busca da tua salvação?

 

pedroavellar - janeiro 2022

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Pedro Avellar

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