Carpas

Carpas

J. A. Medeiros da Luz

 

Juro-vos, ocasional leitor, pelo que

De mais sagrado há de haver aqui;

Juro-vos: somente a verdade profiro,

Rebuçada, embora, pelo vaporoso

E diáfano véu da fantasia,

Como se exprimia nosso velho Eça,

Com engenho e astúcia e ironia.

 

Umas três ou cinco carpas multicores,

Valendo-se do silêncio, da penumbra,

De nossa sala de estar,

Saltaram para fora da tela espatulada,

Respingando, na alvura das paredes,

Nódoas de óleo de linhaça e azul-cobalto

Da piscina borbulhante onde nadaram

Durante duas décadas de gelo

Em que estiveram paralisadas

Pelo timbó, pelo curare, neurotoxinas

Da espátula miraculosa do artista.

 

No retângulo de tela emoldurado

Sobre a imprimadura de alvaiade,

Estampando a geometria áurea,

Só restaram esverdinhadas folhagens

Entre seixos alvacentos e umas parcas

Verdolengas ilhotas de aguapés,

E espumas de madrepérola nas margens.

 

E que fim, Deus meu, levaram as fujonas?

Mimetizando bagres africanos,

Que corcoveiam à noite, nos pastos entre rios

— zombando de  limites topográficos —,

Evadiram-se pelos limosos pedrouços

De nossa realidade cartesiana;

E lá se foram mergulhar, às piruetas,

Naquela fantasiosa terra dadaísta,

Descoberta pelas naus etéreas

Daquele armador, señor Dali,

Salvador de todas as quimeras,

De todas as miragens do sonhar.

 

E já me asseveraram supostas testemunhas,

Que por lá vagaram, em demanda

De Eldorados ou do que os valha,

Que suas escamas, lá, exibem brilhos

Ao luar que aqui não tinham,

Sob a luz nossa, de lâmpadas de LED.

 

 

Ouro Preto, 4 de julho de 2021.

(Do livro: Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora em 2022)

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J. A. M. da Luz

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Comentários

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    • Cara Angélica:

      Sempre grato pelo incentivo, pleno de cortesia. Esses poemas meio fora dos mancais podem chamar a atenção pelo abstruso do tema. Não obstante, em sendo nós outros honestos, temos que seguir inexoravelmente nossas trilhas pessoais, singrando a savana da existência; nesta magna viagem em demanda de uns frutos plenos da doçura das polpas suculentas e de uns favos de mel, furtados — mais apropriadamente: roubados — das abelhas laboriosas a residir nos penedos da cercania; até que alcancemos as fronteiras últimas do metabolismo. E é então que se revelará plenamente a beleza da jornada — pois, ao menos, restarão pegadas na trilha e mais flores e novos frutos, decorrentes de sementes cuspidas à margem do caminho.

      Abraço; j. a.

  • Cara Edith Lobato,

    Obrigado pelas sempre gentis e encorajadoras palavras e pela gentileza de ilustrar o poema com muita pertinência. Com esta providência o autor já poderá vangloriar-se de possuir um quadro de carpas multicoloridas na parede… Inda que seja parede virtual (contrastando com aquela chaparia rígida e pouco hospitaleira da figura de rosto de minha página pessoal). A propósito da chaparia, plena de linhas de rebites, a seleção dela como folha de rosto deveu-se a homenagem  pessoal à técnica antiga, pois se trata de uma foto em primeiro plano do costado de um equipamento ao lado do desativado alto-forno do Parque Metalúrgico da Escola de Minas de Ouro Preto, hoje um centro de convenções da UFOP.

    Nótula ulterior: Em face da mensagem fria ensejada por linhas de rebites em aço antigo, já agora mudei a dita figura de proa, colocando algo bem mais ameno — e mais não se diga, para eu não ter que adicionar, a título de atualização, parágrafos a esta resposta, a cada vez que mude a imagem da capa de minha página pessoal...

  • J.A.Medeiros, o contexto da atualidade nos colcoa diante de diversos desafios e, isto faz descobrir o quanto somos capazes de trabalhar segundo a exigência dessa atualidade. 

    Quanto à poesia, lindíssima e cheia de lirismo, mesmo que poeta esteja, sabe-se lá em qual das eras de gelo de sua exitência, a inspiração surge e chama, ordena ao poeta o registro desta inspiração única.

    Sempre muito bom te ler!

    Meu Destaque!

    Aplausos!

  • 9206217070?profile=RESIZE_710x

  • Pessoal:

    Depois de um ostracismo autoinfligido, mas não intencional, em que a poesia me evitou, pobre ponto material nos vórtices da vida (a debater-se com problemas deste mundo sublunar), eis que egoisticamente apareço, como o velho narval — após imersão demorada —, para tomar fôlego entre as fissuras do gelo. Espero que saiba dosar as visitas, que — a ficar espaçadas — vão-se rarefazendo mais e mais.

    Este poema brotou-me de um contexto nada poético. Uma imagem passageira agora há pouco voejou pela  mente, enquanto (vejam só) estava fazendo uma revisão de artigo técnico...Achei-a um tanto divorciada de meu estilo normal, "cartesiano". Mas, quem é que, seriamente, se arvora a explicar as nuanças do mundo? Ainda mais quando o presumido autor nem mesmo ostenta, nas paredes de sua sala, uma tela com carpas orientais coloridas e rabejantes —  a despeito, talvez, de apenas um vago desejo, desiderato, posso dizer: cobiça?

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