Comensais d'antanho

Comensais d’antanho

J. A. Medeiros da Luz

 

E aquelas traças do sótão

Estampam lá sua gramática,

Que é muito mais escorreita

— E que primor de figuras! —,

Com muito mais louçanias

Que o jargão das pobres traças

Que assentaram residência

Entre volumes  lá embaixo,

Nas estantes do escritório.

 

De Camões belas metáforas

Fazem uso inconteste;

Empregam termos castiços,

Encontradiços, enfim,

Em Aquilino Ribeiro,

No grande Euclydes da Cunha,

Dez mil daquelas pulsáteis

(Miríade… lá diriam!)

Camilianas imagens,

Com peregrinos vocábulos…

E que citações de Cícero!

Já do La Rochefoucauld,

Carroçadas de provérbios.

Mas por vezes termos chulos

Furtados de Matos Guerra…

 

É que, ao contrário das primas,

Essas assaz eloquentes,

Galhardas traças do sótão

Só devoram, maturados

No manto de pó de décadas,

Cartapácios e compêndios

Desses autores d’antanho.

 

Hoje mesmo as encontrei

(Subindo eu lá com propósito

De lhes fazer um flagrante)

A mordiscar com donaire

Dona Guidinha do Poço,

A pobre da Tia Tula,

E a Vida de Santo Antão

(Novo suplício daquele

Anacoreta do Egypto).

 

 

Ouro Preto, 22 de agosto de 2021.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • J.A.M da Luz, quão prezeroso é ler teu poema. Ler-te me transporta, deveras, para o passado da escrita daqueles que se foram e que usam um vocabulário rebuscado para o embelezamento da poética. Eis-me diante de ti, em aplausos, por conservares este modo e o gosto pela zeloso pela altivez do poema,

    Meus aplausos e aguardo o livro.

    Conheces o Clube de autores? Publicação por demanda?

    Abraços J.A.

    • Acabo de solicitar a minha filha  postar os livros para nossa amiga Márcia Mancebo. Para enviá-los a você, preciso de seu endereço, pois não o tenho.

      Abraço.

      j. a.

  • Um texto com vocabulário rico e pleno de inspiração. Minhas felicitações

    • Cara Lilian:

      Obrigado pela visita e gentil comentário. Abusando de licença poética ultrarromântica, digo que nossa língua é como caboclinha tímida (mas com seus atavios), nascida nas barrancas da borda ocidental da península Ibérica, a nos brindar marotamente com esses vocábulos plenos de vogais, e essa herança sonora do Lácio. Como cabocla que é, somente quando lhe assuntamos com vagar, vemos-lhe umas flores de ipês, ou açucenas, presas por trás da orelha, uma silhueta flexuosa a transparecer do vestido de chita colorida, hálito travante de murici e de caju não de todo maduro... E há gente que diz preferir as Misses Mary Smith da vida, com sua guturalidade consonantal e áspera, como a língua inglesa, exalando seu bafo de gim tônica, com ar complacente de superioridade cultural.

      Abraço do j. a.

  • Magnífico! Congratulações!

    • Caro Efepê Oliveira:

      Sensibilizado fico pelas palavras generosas. Com efeito, como (perguntei-me) prestar homenagem — meio fora dos mancais, embora  — aos velhos monstros sagrados do panteão literário,  sem descambar para a sabujice? O jeito por mim escolhido foi expelir uma espécie de travessura literária. E, a modo de blague, esfregar uma flanelinha macia em velhos vocábulos, azinhavrados em fundos de gavetas de museu, polindo amostras deste vernáculo, de que um verdadeiramente feliz acaso nos fez súditos.  Abraço do Jota-A.

  • Pois é, Pessoal; hoje de manhãzinha, logo no abrir dos olhos, lembrei-me de umas caixas de livros guardados no sótão. Sem o devido cuidado de embebê-las em uma atmosfera sublimada de naftaleno (as velhas bolinhas de naftalina!). Não é proteção completa, mas um convite a indigestão às traças. Ato contínuo, pulularam-me no cérebro uns versos curtos e irônicos.

    Eis o resultado, após limpa de enxada e assentamento de uns enfeites estilísticos, como o de ajustar o trote do metro, regular como o dos velhos burros a tracionar carroças com legumes. Foi meu modo de tecer uma homenagem — um tanto abstrusa — a esses velhos ledores de alma, que depuseram seus achados de gênio em pranchas tipográficas. E que nos embalaram, nos luminosos dias de juventude,  sonhos, sonhos, sonhos...

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