Do Lácio o deus era finito
J. A. Medeiros da Luz
Pois assevera-nos Ênio
Que da morte o habitat
— Reino trevoso — lá demora
Nas ribas barrentas do Aqueronte
(Igarapé de águas gélidas e turvas),
Com altos templos ao deus Orco,
E pálidas, desmemoriadas hostes,
Miríades de espectros taciturnos
De Leto pervagando grotões enevoados
Por penumbras, por tênebras, por brumas.
Peregrinos sem meta atingível…
E tal paragem abissal, imersa
Em eterna túnica de silêncios,
E plena de ravinas e espinheiros,
Teve por efeito meter medo
Ao augusto imperador do orbe,
O poderosíssimo Adriano.
Assim, e afinal se vendo humano,
Extenuado, pondo-se por fim
A palmilhar a derradeira milha,
A facear já, embora desquerendo
— A crua verdade seja dita! —,
O inescapável estirar de canelas,
Desta sorte arguiu, desconsolado,
Sua alma trêmula, gárrula, estouvada
Borboletinha buliçosa e leve:
— Ó anímula, nômade, grácil,
Conviva parceira do corpo;
A que lugares ora partes,
Pálidos, rígidos, desnudos?
Sem, como soías, dar-te a joguetes?
Ouro Preto, 02 de novembro de 2021.
[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]
[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]
Comentários
Cara Margarida:
Muito prazer sinto por sua visita. E obrigado pelas gentis palavras. Espero, ademais, que esteja você bem de saúde.
Com efeito, no que tange à poesia, seus temas são — ao fim e ao cabo — inerente a todos os seres humanos. Como coloquei, com outras palavras, em comentário anterior: quer seja o imperador totipotente, quer seja o agricultor humílimo, na labuta, envergando a coluna vertebral à inclemência do sol, naquele lento acariciamento das folhinhas tenras da horta, que lhe gratificará, por fim, com o custoso sustento.
Pois, quem nunca suspirou de bem-querer, mirando o horizonte, ou assuntando o barulhinho da chuva despencando dos beirais? Quem, afinal, nunca se perguntou sobre as causas primeiras, sobre o porquê de sua existência? Quem nunca se ensimesmou, pensando sobre onde e quando chegaria ao término da grande caminhada?
Os humanos somos os mesmos — em todos os quadrantes e em todas as eras. E essa identidade entre nós outros e seres que, há tanto tempo, se dissolveram na bruma dos séculos é que acaba por ser o mote, baseado na empatia, o fio condutor deste poemazinho.
Abraço do j. a.
Cara Angélica:
Muito agradecido por sua cortesia. Quisera ter a fluidez hialina dos versos cadenciados, daqueles que camuflam a artesania trabalhosa dos poetas viscerais (vêm-me ao pensamento modelos como que inatingíveis, gente como Cláudio Manoel da Costa, Raimundo Correia, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Cesário Verde).
Contudo — escultor bissexto —, despossuo a requerida destreza com cinzel, bujarda e malho; mas faço o meu melhor com a pazinha e o balde plásticos, na areia umedecida pela espuma da rebentação, gerando meus impermanentes castelinhos de areia... E o macete, para distrair a vista das imperfeições, é fincar no cimo do torreão bandeirola drapejante recheada de cores.
No presente caso, a bandeirinha foi o lançar mão de vulto histórico famoso, qual seja o sr. Adriano, eternizado nos blocos de Carrara e no monumental romance de Marguerite Yourcenar.
Abraço!
Que maravilha aqui nos apresenta, apropriada para o momento que vivenciamos. E não tínhamos que esperar mesmo que o linguajar fosse todo cristalino, quando a referência são os cinco versos tornados tão enigmáticos pelas traduções e historiadores. Parabéns! Tomara nos brinde com novo versejar sobre o tema ou sobre outros desse contexto!
Meu caro Avelar:
Obrigado pela visita e pelas palavras generosas.
Na verdade, em que pese havermos sempre que focar no futuro e nas maneiras de torná-lo menos distópico, o passado também tem seus atrativos e, obviamente, lições. O passado cultural da humanidade (isto é: de todas as comunidades) — quando ainda disponível — vale mais que cem mil ânforas resgatadas de naufrágios, abarrotadas de pedrarias e moedas.
E o mundo greco-romano não foge à regra, até porque o poderio militar das legiões o levou a uma desproporcionalidade, frente a culturas menos poderosas. A ideia, porém, é aproveitarmos todas as experiências. Nessa linha, arvorei-me a passadista para trazer à tona aquela nossa intrínseca e torturante dúvida sobre o nosso status após o desenlace. Vemos que, do descamisado (sobrevivendo a custo em sua choupana) ao arquiduque (refestelado entre os mármores rendilhados de seu palácio), todos a experimentam, ao menos em parcelas significativas da caminhada.
É curioso, que durante a fatura do poema em tela, descrevendo o mundo inferior como o concebiam naquela cultura, vinha-me sempre, à visão interior, o ambiente da [Divina] Comédia de Dante Alighieri, com aquelas soturnamente impressionantes gravuras de Albrecht Dürer, mostrando que já fazem parte do inconsciente coletivo do mundo contemporâneo.
Abraço do j. a.
Pessoal:
Queira me perdoar o empolado vocabulário desses versos. É que o velhíssimo e muito famoso poemeto de Adriano, fruto temporão já à borda do dia final do imperador romano, estava — a séculos — a verrumar-me o cérebro, atraído com a melodia dos versos da quintilha (ou, como dizem os estudiosos do metro: com o ritmo dos dímetros iâmbicos). Lendo recentemente um artigo de Ivan Pérsio de Arruda Campos (CAMPOS, I. P. A. O último poema do imperador Adriano. Cadernos de Literatura em Tradução, n. 7, p. 257–260 ) acerca da influência do poeta latino, Ênio, sobre a gênese do poemeto em tela, não resisti à tentação de fazer uma releitura bem pessoal, quase brincadeira, do tema.
Embora só possua eu uns parcos rudimentos de latim, para efeito de completude da explicação, cito, aqui, o dito poema (do qual pululam traduções no ciberespaço), o qual é o seguinte:
Animula vagula blandula,
hospes comesque corporis,
quae nunc abibis in loca
pallidula rigida nudula?
nec ut soles dabis iocos.