Milagre, não. Humanismo, sim.
Aquela era a primeira vez, em quase vinte anos da sua carreira como professor, que Luís Carlos se via a dar aulas numa escola dita pública. O facto de sempre ter andado por colégios particulares, primeiro nos da própria família e depois nos de famílias amigas, dera-lhe uma noção distorcida da realidade social das escolas públicas, principalmente as que serviam comunidades de graves carências sociais, como era o caso daquela onde fora colocado.
Foi logo nos primeiros dias que Luís Carlos se apercebeu que uma grande maioria dos seus alunos, jovens na casa dos 7/8 anos, era oriunda de famílias com grandes dificuldades no seu dia-a-dia, geralmente famílias onde o elevado número de filhos era uma realidade, além de tudo o mais que está subjacente a este tipo de guetos da era moderna.
De entre todos os que lhe pareciam mais necessitados, Luís Carlos, foi-se apercebendo que Artur era o que dava mostras de mais precisar de satisfazer as suas necessidades básicas, como a alimentação.
Certo dia, Luís Carlos, observou como Artur mirava, com verdadeiros olhos de desejo, o pão que um seu colega mastigava com elevado prazer. Aproximou-se do garoto e perguntou-lhe:
- Artur, gostavas de comer um pão como aquele?
- Gostava. Nunca provei um pão daqueles com sementes. Aliás, muitas vezes nem daqueles nem de nenhum. Sabe Professor, lá em casa somos dez pessoas, os meus pais, sete filhos e mais o meu avô. O pouco dinheiro que o meu irmão mais velho, ele tem nove anos, consegue arranjar na mendicidade não chega para nada. Eu sou o único que anda na escola.
- Os teus pais não trabalham?
- Não. O meu pai, não só não trabalha, como ainda exige que o meu irmão lhe dê parte do dinheiro que consegue arranjar. Depois vai gastá-lo em vinho.
- Mas os teus irmãos não andam na escola porquê?
- Ora, cinco são ainda pequeninos, dois são gémeos, e o outro, desde muito novo que o meu pai o obriga a ir pedir para ele.
- Então e tu?
- Eu, apesar de tudo tive sorte, uma vizinha minha, ameaçou o meu pai que se me pusesse a pedir, como fez com o meu irmão, o denunciava e a segurança social ia lá e tirava-lhe os filhos todos. Acho que ele teve medo e mandou-me para a escola.
Luís Carlos estava espantado, não tanto com a história de vida de Artur, mas sim com a sua clareza de espírito, quem o ouvisse falar, de certo pensaria que se tratava de um adulto e não de uma criança de 7/8 anos.
Luís Carlos retirou-se, enxugou uma lágrima e só voltou já o recreio estava quase a terminar, trazia um saco de papel na mão. Entregou-o a Artur e disse-lhe:
- Toma, é pouco porque a padaria só já tinha esses quatro.
Eram quatro daqueles suculentos pãezinhos com sementes. Artur tirou um, partiu-o ao meio e comeu metade, guardando o resto:
- Então, só comes isso?
- Sim, vou guardar o resto para os meus irmãos. Eu sempre como alguma fruta que consigo apanhar no caminho de casa até aqui, agora eles é que nem isso.
Luís Carlos ficou impressionado com a atitude do garoto:
- Artur, tu acreditas em milagres?
- Senhor Professor, desculpe o que lhe vou dizer. Não, não acredito.
- Pois olha que acho que devias acreditar.
Artur não percebeu o que o professor lhe queria dizer. Só no dia seguinte, ao ouvir a sua mãe a gritar é que compreendeu tudo. A progenitora fora encontrar, no prego que servia de puxador à porta da barraca onde viviam, um saco com pães de sementes.
Nesse mesmo dia, após as aulas, Luís Carlos apresentou-se em casa de Artur e, sem medo das ameaças do pai do garoto, informou que apresentaria uma queixa na comissão de protecção de menores, caso ele persistisse em continuar a não assegurar as condições mínimas de dignidade humana, aos filhos. Ao sair, afagou a cabeça do petiz e disse-lhe:
- Podes não acreditar em milagres, mas acredita na boa vontade dos homens.
O pai de Artur, temendo as ameaças do professor, e tudo o que elas podiam significar, isto é, ficar sem quem lhe angariasse o dinheiro suficiente para se continuar a embriagar dia após dia, lá se foi deixando vencer pelo medo, permitindo que todos os outros filhos frequentassem a escola.
Francis Raposo Ferreira
31/10/2019
Comentários
Retalhos que a sordiez do homem cria.
Apludindo teu maravilhoso texto.
Parabéns, Francisco.
Amiga Edith Lobato, como a vida seria muito melhor se o humano parasse mais vezes para escutar o bater do coração da vida. Obrigado. Beijinho
Amiga Ang´lica, simples retalhos da vida. Beijinho.