Faz parte da história, de todos bem conhecida, a saga dos nordestinos na conquista do Norte do país. Os cearenses, em especial, tiveram grande participação na ocupação da Amazônia. O povoamento ocorreu rotineiramente com fluxos regulares de migrantes ao longo do final do século dezenove e princípios do século vinte. A migração era intensificada em períodos de seca aguda no Nordeste brasileiro. A família de meu pai, com origem em Jaguaribe, com fortes raízes telúricas, teve vários de seus membros envolvidos nesta epopeia..
A principal atividade lá desenvolvida consistia no sangramento de majestosas seringueiras que forneciam seu precioso látex para o enriquecimento de ambiciosos empresários.
Naqueles rincões inóspitos da Amazônia as populações recém chegadas estavam sujeitas ao sombrio designo da morte na forma de doenças comuns à região, com a malária e a hanseníase (à época denominada lepra) sendo as mais importantes, pelo grande número de vidas ceifadas. Muitos cearenses ao retornarem, depois de longa temporada sem sucesso, aqui chegavam já infectados de doenças endêmicas à região, embora os sintomas só viessem a se manifestar tempos depois.
Edith casou-se com um conterrâneo que antes do consórcio tentara, debalde, a sorte no norte do país. O casal teve quatro filhos todos do sexo masculino.
Devido às dificuldades que o meio hostil impunha e à falta de perspectivas daqueles que ganhavam a vida laborando a terra, seu marido buscou ajuda de meu pai para obter trabalho na capital. Veio morar em nossa casa enquanto arrumava emprego e condições para trazer mulher e filhos.
Seu marido tinha uma ferida no tornozelo que nunca cicatrizava apesar dos ingentes cuidados de minha mãe, que fazia, pacientemente, as vezes de enfermeira no cuidar de sua enfermidade. Com o tempo mamãe desconfiou que o problema fosse mais sério, pois a lesão era indolor. Mamãe manipulava a ferida e ele estranhamente não reclamava qualquer tipo de dor ou desconforto. Papai ficou muito preocupado com a possibilidade de hanseníase. Se fossem verdadeiras suas suposições estaríamos todos correndo sérios riscos de contrair a doença. Principalmente minha mãe que cuidava do paciente sem preocupações maiores com assepsia e eu e meu irmão que costumávamos nos enroscar nas pernas, braços e colo de seu cunhado.
A doença era muito estigmatizada naquela época, tendo as pessoas o hábito de omitir ou mesmo esconder do público os parentes enfermos para evitar discriminação. Os doentes quando diagnosticados tinham que ser recolhidos a hospitais específicos (leprosários) onde ficavam isolados para cumprir longos e por vezes ineficazes períodos de tratamento.
Seu cunhado pediu a ajuda de um médico seu amigo que discretamente nos visitou em nossa casa e com uma simples e rápida vista d'olhos facilmente diagnosticou a doença já em estádio avançado.
Seu marido foi internado no Leprosário, em Fortaleza, e lá permaneceu por longo período sem obter cura até seu falecimento.
Contraíram a doença e apresentaram os sintomas característicos primeiro seu filho mais velho e depois o segundo. Os outros dois não adquiriram a doença. Os filhos infectados foram internados no mesmo hospital, mas tiveram mais sorte que o pai, pois depois de alguns anos de internamento ficaram curados definitivamente da terrível doença.
O mais velho deu ao tio muita preocupação, pois sempre que tinha uma folga do hospital telefonava solicitando dinheiro para se divertir nos lupanares da cidade. Seu tio evitava recebê-lo em seu local de trabalho. Temia vir a ter sua condição se saúde descoberta e em consequência sofrer alguma discriminação. Combinava um local público, geralmente na praça do Ferreira situada no centro da cidade.
Em alguns momentos, no final de semana, ele se dirigia ousadamente à nossa casa. Quando isso acontecia era reservadamente recebido apenas por papai e sua presença era restrita à sala de visita. Os filhos eram terminantemente proibidos de aparecer na sala.
Fico a imaginar quantas prostitutas não vieram a ser contaminadas diretamente e quantos "clientes" teriam posteriormente contraído a doença pela ação irresponsável e egoísta de meu primo. Durante muito tempo sua figura ameaçadora pairou sobre nossa família como uma espada de Dâmocles. Hoje vejo o quadro com um olhar diferente. Meu primo fora mais vítima que algoz. Era apenas um jovem recém saído da adolescência, extraído do seio de sua família e encarcerado num local hostil e sem um mínimo de afeto humano. Até os parentes mais próximos, no caso minha família, o evitavam. Não deve ter sido fácil para ele e também para o irmão.
Edith não contraiu a doença. Era uma mulher de espírito forte, inquebrantável. Cedo resignara-se com as vicissitudes e revezes que o destino lhe reservara.
Passou a vida esperando como a maioria das mulheres do seu tempo. Primeiro o noivo que viajara para o "inferno verde" com promessa de voltar para levá-la consigo. Esperou uma segunda vez quando, já casados, ele a deixou com os filhos e partiu em busca de dias melhores na capital. Na partida deve ter feito mil promessas de retornar já bem de vida para buscá-la. Mais uma vez seus sonhos foram frustrados.
Acompanhou, à distância, a desdita do marido, seu internamento compulsório por atroz desígnio do destino. Findou, imagino, por sentir-se aliviada, apesar da perda, quando a vida do seu marido, desde sempre um eterno pesadelo, chegara ao final como uma dádiva, uma libertação. Continuou esperando, desta vez pela cura e liberdade dos filhos, também vítimas, também condenados pelo mesmo impiedoso e implacável destino.
Os filhos, depois da cura, evadiram-se da terra natal. Escolheram, na tentativa de obtenção de dias melhores, não o Norte como o pai uma vez tentara, sem sucesso, mas o Sul, novo eldorado dos desvalidos nordestinos. Não para o inferno verde opressor da Amazônia, mas para a selva de pedra intimidadora da pauliceia.
Com o tempo e as decepções cansou de esperar. Resignou-se e passou a viver sua solidão, a guardar o nada, pois foi o nada que o destino lhe reservou.
Durante um bom tempo ficou viúva de marido vivo. Depois de sua morte, ainda jovem, permaneceu viúva por quase toda a vida. Já idosa, decidiu casar com uma pessoa humilde que lhe fazia companhia e ajudava na faina diária de sua roça e de seus bichos. Davam-se um ao outro tratamentos formais de DONA EDITH e MEU SENHOR. Os familiares ficaram "escandalizados" com sua atitude. Como pode uma "velha", já quase sem idade, viúva de muitos anos, decidir casar e por cima com uma pessoa simplória, inexpressiva, um seu serviçal? Meu pai tomou partido da irmã mais velha, argumentando ter ela todo o direito de buscar um pouco de lenitivo e apoio no companheiro escolhido para dividir seus derradeiros dias.
Terminou sua vida só, embora na companhia do novo marido, perto de sua roça e de seus bichos.
F J TÁVORA
Comentários
FRANCISCO JOSÉ TÁVORA
A HEMOção, de certa forma, tolhe meus pensamentos, que também se abraçam molhados pelas lagrimas na leitura deste maravilhoso Conto da RR = Realidade Real.
SIM - Para mim MARAVILHOSO, até porquê assim não o sentisse, sou sincero em admitir que provavelmente nem teceria comentário algum. MAS... Os Poetas - Escritores - Contistas que me antecederam, disseram - digamos que "quase tudo" o que devia ser dito... E afirmo o "quase tudo", pois o TUDO mesmo, só os saberiam (se assim possível fosse, os Personagens que vivenciaram a realidade do Conto).
Deixo claro, que para mim, qual Todos os Filmes e Contos que Aprecio, este também teve um Happy End que se perpetuará na memória de quem o conhecer e ou mesmo foi (como Nós desta Casa de Poetas, Poesias e Contos) mais do que pelas memoráveis memórias - mais - muito mais - pelos Exemplos de Vida... De Conceitos e PreConceitos, que qual um Antigo e sempre Atual Filme intitulava: "Assim Caminha a Humanidade"!!!
NOSSOS CALOROSOS APLAUSOS e que... Por Favor - continue nos brindando com teus Memoráveis Contos - Contista - Mor!!!
gaDs
A saga de sua tia Edith, Francisco, relatada de uma forma tão real que nos deixa presos a leitura até o final. Parabéns!
Eu senti teu conto como um documentário por trazer elementos que fazem parte da história, como a extração do látex, as doenças tropicais da época. Ao ler teu texto fui de volta para a terra onde nasci, a pequena comunidade de Fordlândia, uma gleba de terra concedida pelo governo brasileiro ao magnata Henri Ford para desenvolver o ambicioso projeto de cultivo das seringueiras que, na época foram trazidas da Malásia. Por aqui, também, os casos de malária, esquistossomose (barriga d'água), lepra(Hanseníase), tuberculose eram doenças assustadoras, uma vez que alguém fosse diagnosticado com uma dessas doenças era isolado, não havia cura para a tuberculose, lepra e esquistossomose, mas a malária se contornava com um remédio para febre chamado quinino.
As vicissitudes da vida levam as pessoas por caminhos tenebrosos. É na observação da vivência dos adultos que as crianças forjam a reflexão e ensinamentos para a sua própria vida. Creio que os garotos desta família tiveram oportunidade de tirar profundas e valiosas lições da vivência de D.Edith. Outro ponto que quero tocar é, sobre a visão do passado, D. Edith, apesar de todo o sofrimento quebrou tabus enfrentou julgamento moral das pessoas.
Adorei ler este teu conto.
Meus aplausos.
Acho que não me engano ao reconhecer na história de Tia Edith um dos mais fortes componentes formadores da pessoa de seu sobrinho. Das experiências assimiladas na convivência com a tia, vieram valores e princípios estruturantes da visão de mundo que o então jovenzinho ia assumindo e viria depurando ao longo dos anos. Isso porque é flagrante o carinho e o respeito por Dona Edith,como também pelo pai, a quem ele se refere em momentos de ação decisiva sempre orientada pela correção e cuidado familiares. Desse universo de códigos rígidos, de comportamentos convencionados, de hierarquias bem definidas e da inexorabilidade do destino, forjou-se o caráter do enunciador dessa bela história, que tanto revela de seus entes queridos quanto dele mesmo ao expor o prisma pelo qual revê seu passado.
Uma bela história, sem dúvida, Francisco! Um prazer e uma honra ser levado a esse tempo, a essas regiões, a essas pessoas que, ainda mais hoje, tanto podem nos ensinar sobre a vida e seus enfrentamentos - e a necessária maturidade para extrair de cada episódio uma compreensão para além doas superficialidades com que se tingem os seus protagonistas (a exemplo da nova forma de ver o primo, mais como vítima do que algoz).
Esse texto, para mim, vem como um documento da dignidade de que se revestem as suas personagens. Um ensinamento pelo qual lhe agradeço: obrigado!