Meu palimpsesto franciscano
J. A. Medeiros da Luz
“Louvado sejas, meu senhor, pelo irmão fogo
com o qual iluminas a noite;
e ele é belo e jucundo e robusto e forte.”
— S. Francisco de Assis/A. Capistrano.
Eras todo caridade
E lançavas no seio do irmão vento
A prédica maravilhosa de teus atos
Que as palavras reforçavam, as quais palavras,
Tão mansas e cheias de virtude,
Enterneciam o coração dos brutos;
E as andorinhas buliçosas aos milhares
Emudeciam-se a ouvir-te quando
Lhes dirigias semelhantes ditos:
“Sede felizes, minhas irmãs, e gratas e generosas
Porquanto o vosso Pai onipotente
Vos atribui o elemento do ar ao vosso voo
E vos dá as bolotas da floresta, o alimento,
E dá a irmã água, a qual verte entre as pedras
Da fonte cristalina,
E agasalha com as árvores acolhedoras
Vossos filhos nos ninhos!
Louvai o bom Senhor como puderdes!”
A que respondiam as avezinhas
Com cânticos belissimamente variados,
Flechando os ares.
O rico mercador italiano,
O qual te deu o nome,
Muito deve ter se admirado do filho
Abrir mão das coisas mundanas e do século,
Do prazer, tão ridente à mocidade,
E se lançar pela poeira dos caminhos,
Amparando enfermos d’alma e enfermos do corpo!
Que pensaria ele ao ver-te
— Jogral de Deus —
A dividir o pão que mendigavas,
Tendo por mesa a lousa fria,
Por banco, a relva da beira da estrada,
O dossel das nuvens — por único teto?
Só mesmo um coração tão despojado
Para alegrar-se com a injúria e entristecer-se
Quando era centro das homenagens!
E se o lobo da Úmbria, o irmão lobo,
Amansou-se com a doçura da tua voz,
O que não conseguiste no endurecido coração
Dos homens, com falar-lhes brando
E sapientissimamente,
No linguajar da gente simples,
Exortando-os à prática do bem?!
De que valeriam, como disseste
Certa vez a Deus (com quem conversavas
Como se fora um amigo
— E por tanta graça te esforçavas
Em seres tanto mais humilde);
De que te valeriam colinas inteiras
De seixos e calhaus mui preciosos
E as campinas com trigais feitos de ouro
E os rios de mel
Ou o mais quanto possa ser mais belo e precioso e raro,
Se eras apenas, no teu próprio dizer,
Vil homúnculo sem maiores méritos!?
Mas reservou-te Deus o paraíso,
Pois bem o merecias...
Sem seres belo e nobre e sem maior ciência
Respondias que, se de inúmeras graças
O Senhor te cumulava
— Do fervor da palavra, do poder de dar
De novo a luz às almas desgraçadas,
Era pra confusão
Da fortaleza, da arrogância e da nobreza.
Tu que, seguindo os preceitos de Cristo,
E tendo por propósito jejuar
Durante quarenta dias e quarenta noites,
No ermo, em meio a silva e espinheiros,
A cismar sobre as coisas celestiais,
Comeste, ao cabo, uma migalha de pão seco
Pra evitares a vanglória de ombrear
No feito com o Crucificado;
Que belos e inocentes ensinamentos
Tu nos deixaste!
O mundo hoje mudou muito em muitas coisas;
Em outras nada.
Já não há mais
Lobos famintos que ameacem as aldeias
E o pó nas alpercatas de hoje
É de carvão e de cal e de cimento Portland.
As andorinhas, os animais, escassearam.
A água e o ar não são mais elementos
Tão puros e preciosos e castos.
Os leprosos já não vagueiam com sinetas,
Avisando sua passagem nas curvas dos caminhos
(Que lúgubre cantilena não seria?!);
Mas as ruas enchem-se de miseráveis
Que esmolam caridade,
De crianças desgarradas, pobrezinhas,
Nascidas sabe-se lá de quem!
As almas continuam pecadoras
Dentro dos seus horizontes
E deve haver orvalhos de esperança
Dentro de cada uma.
Ah, meu pobre amigo,
Que falta ainda fazes
Nestes dias em que a bondade falece
E — todos sós — não conseguimos
Chamar uma só criatura de irmã!
Devíamos acrescentar ao Cântico das Criaturas
Mais este verso tão claro e necessário e vero e fácil:
— Louvado sejas, Senhor, pelo irmão Francisco!
Do livro: Vielas Enoitecidas, Jornada Lúcida Editora.
Comentários
Cara Marsoalex:
O tema — nosso caro fratello Francesco — ajuda um bocado o êxito do poema...
Abração;
j. a.
Agradecido pelo comentário, cara Edith. A vida e a obra de S. Francisco de Assis são realmente inspiradoras, transbordando-se para além dos cânones das religiões. Abraço;
j. a.
Uma linda hoemangem.
Belíssimo poema.
Aplausos!
Pois é pessoal: puxei do fundo da gaveta, amarelado de décadas, esse poema pautado na admiração pelo poder da humildade e empatia, que eram a essência mesma do fratello Francesco. Mesmo então, já se rotulando agnóstico, aquela mensagem parecia ao presente autor a alma das lições do Nazareno, que — milênio e duas centúrias antes —, congregava os puros de coração, pelos ressequidos caminhos da palestina.
Abraço a todos e vida longa a todas as espécies (e espécimes) dos irmãos animais, nossos companheiros no concerto universal.