Centelhamento
por J. A. Medeiros da Luz
Remiro, bem de viés, este tampo
Da velha amiga escrivaninha
(Que o sol invernal — de viés também — alveja)
E vejo o pardo baço dos argueiros da poeira
Que os secos dias do presente insuflaram,
Mas Zéfiro falhou no transportá-los,
Para mais além.
Haverá, igualmente, em paralelismo,
Na ponta da caneta, encrustada,
Aquela tinta, que tantas emoções já graficou?
A chalupa do marujo encarquilhado,
A sela do exaurido tropeiro, ajaezada,
Já se escangalharam pelas intempéries?
Já se corroeram pelas cracas e moluscos que,
Sub-repticiamente, subaquaticamente,
Aderem-se ao casco da existência?
Avante, pois, meu bom homem!
Que a mula do destino ainda espera;
Avante, que o mar dos desafios
Ainda se contorce em vagalhões e mil procelas.
E tu, denodado Dom Quixote ressurrecto,
Haverás de persistir em demanda do Santo Graal,
Em demanda de Eldorado,
Em demanda do elmo de Mambrino,
Por mais que tenhas ainda de duelar
Com moinhos de vento,
Com megapotências poliatômicas.
Vai tu, meu Alter Ego, vai,
Que eu fico cá, adstrito a este tampo
De imbuia da velhusca escrivaninha,
A esperar o cristalizar dos versos, que talvez
Não mais, não mais
Eclodirão daquele limbo etéreo, nascedouro
Dos sonhos das crianças e dos anjos...
Ouro Preto, 04 de agosto de 2024.
[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br; © J. A. M. Luz]
Comentários
Bom Dia J. A., acordei com chuva. Que benção!
Os seus comentários são outras obras de arte. Eu já lhe "disse" isso.
São sempre ricos de nutrientes, como um delicioso bolo de aniversário.
Sempre é possível adquirir mais e mais conhecimentos através da sua sabedoria, tanto literária quanto filosófica.
Abração e apareça mais.
Li mais de uma vez.
Senti uma nostalgia bem forte. Algumas reflexões.
A poeira, aqui chove poeira, literalmente.
Seria preferível a chuva.
Agradecido pela visita e comento, cara amiga Margarida:
Por vezes, especialmente no cair da tarde, um quê de nostalgia impera nos desvãos de nossos cantinhos de meditação. Então, muito embora a tristeza não seja a tônica de nosso proceder, consentimos inadvertidamente que as frases mimetizem essa atmosfera. Mas o desalento não é o melhor dos combustíveis para a caminhada. Há que inspirar os sutis aromas das corolas, à borda do trilheiro... Avante, sempre, e que Vésper, com seus mistérios, nos galvanize aquela aura de gratidão e comunhão com as coisas e os seres.
Comentando a "chuva de poeira" de sua frase, tenho a dizer que, no século XIX, Claude-Henri Gorceix (1842 – 1919), fundador da Escola de Minas, cunhou a frase famosa: “Minas é um coração de ouro em um peito de ferro.” Mas a verdade é que, quanto a poeira, em agosto, aqui por Vila-Rica-de-Ouro-Preto, chove, não ouro, mas somente hematita... Daí o tom pardo da poeira desencadeadora dos versos.
Abraço do jota.
E lá se vai mais um barquinho de origâmi, em demanda de Ítacas perdidas a jusante, no que dure a enxurrada dessas chuvas (e mais: enquanto se mantém seca a celulose da carenagem...).
Nossas diminutas existências são aparentadas com aquela gigante jornada de Ulissses. É como lá diz o repto do general romano Pompeu: “— Navigare necesse, vivere non necesse” traduzido liricamente pelo múltiplo Pessoa. E naveguemos, pois, se viver é mesmo secundário! Desçamos pelos lacrimais e córregos da vida, à força dos remos do destemor ou, se esse nos faltar (por vezes): de bubuia.