Poema algo abespinhado: "Em Lilliput"

Em Lilliput

J. A. Medeiros da Luz

 

Cerro as pálpebras, por um momento,

E, num sortilégio estranho e  embasbacante,

Descubro-me, boquiaberto, dando com os costados

— Roupa encharcada, estômago vazio —

Naquela ilha venturosa de mil papagaios,

Verdadeira terra dos lençóis, tamanha

A plenitude de suas praias adornadas

De coqueirais, onde, displicentemente,

Aninha-se e onde canta, onde canta o sabiá.

 

Eis que me vejo, vou dizendo,

Em plena orla litorânea desta ilha

Cognominada, há muito, Lilliput,

E nesta terra — em  se plantando — dar-se-á

Nela tudo, por bem das águas que tem,

De diminutas dimensões,  embora.

 

Mas percebo agora que o estômago,

Tido no início por vazio, a roçar

As doridas costelas dorsais minhas,

Não se constitui somente

Odre velho evacuado: — é que me acho

Constringido por tiras de couro,

Amarrado por embiras fortes,

Numa malha imobilizadora.

 

E quem foram os patifes que me ataram,

Se não esses fedelhos, a meu redor,

Homúnculos  que vejo, numa azáfama,

Podendo, quando muito, ter

Palmo de altura, ou pouco menos?

É mesmo um desplante, ora vejam!

 

Com um inspirar profundo e aterrador,

E um tranco muscular bem súbito,

Arrebento estas amarras de brinquedo,

Pois, sou eu gigante em Lilliput!

E, diferentemente do Bandeira,

Em  não ostentando eu

— Desvalido súdito que sou —

Amizade a  este ou àquele outro rei,

Atiro-me ao mar, em demanda doutra terra,

Sobraçando uma nau de Lilliput.

 

Quem sabe, ao cansar-me, topo

Com plagas onde gozem, enfim,

Seus maiorais, de maior clarividência,

De lucidez de juízo, empatia,

Sem ser déspotas; quem sabe?

— Uma terra governada por equídeos...

Ouro Preto, 17 de janeiro de 2022.

[Do livro Seixos ao sol, a sair pela Jornada Lúcida Editora, em 2022]

[Comentos também podem ser dirigidos a: jaurelio@ufop.edu.br ou jaurelioluz@yahoo.com © J. A. M. Luz]

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J. A. M. da Luz

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Comentários

  • Belíssimo Poema, Obra de Excelência

    Parabéns pela notória publicação

    abraços de Antonio Domingos

    • Caro Antônio Domingos:
      Muito agradecido por sua visita e palavras tão gentis. E justo agora, relendo o poema, para eu me reinteirar de sua atmosfera (estranhamente, tenho forte amnésia seletiva com coisas de minha própria lavra...), e dos comentários anteriores, vejo que me passou despercebida outra alusão aos velhos românticos, mas que o subconsciente tratou de inserir. Trata-se do transbordante Casimiro de Abreu, que também andou se derramando de saudade da terra natal (como G. Dias) no poema chamado "A Canção do Exílio" (de 1855, constante no livro Primaveras). Leia-se esse trecho dele (truncado por concisão):

      "Eu nasci além dos mares: / Os meus lares, / Meus amores ficam lá! / Onde canta nos retiros / Seus suspiros, / Suspiros o sabiá! / (...) Oh! que saudades tamanhas / Das montanhas, / Daqueles campos natais! / Daquele céu de safira / Que se mira, / Que se mira nos cristais!"

      Agora veja-se minha repetição (uma espécie de anáfora interna, de ênfase):

      "(...) Aninha-se e onde canta, onde canta o sabiá."

      Não se vê aí, límpida e claramente, a utilização do recurso estilístico, decalcado do poema lido na infância?

      Só para constar, a "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias, é-lhe posterior (de 1857, vinda a lume no livro Primeiros Cantos).

      Enfim, somos uma caixinha de recuerdos, sejam eles apercebidos, ou não (ficando, essoutros, como tímidos tatuzinhos-de-jardim, no porão da consciência, e aflorando por vezes, para tomar um banhozinho de sol).

       Abraço;

      j. a.

  • Uma maneira linda  e adequada ao tema. Muito bonito. 

    Meus parabéns!!!

     

    • Obrigado, cara Márcia  Mancebo:

      E para continuarmos na questão ética, a qual estivemos a discutir nesses diálogos de amigos, quando ficarmos descoroçoados com o sucesso do pavoneio triunfante de lilliputianos morais,  podemos recorrer a um pensamento que li, certa feita, grafitado em um muro, de lavra do grande general argentino José de San Martin (1778–1850). Frase que me calou fundo no espírito:  "La conciencia es el mejor juez que tiene un hombre de bien". 

      Abraço;

      j. a.

    • Concordo plenamente contigo

  •  Lilliput, ilha fictícia do romance As Viagens de Gulliver. O autor a aprensentou como parte de um arquipélago localizado no oceano Índico.

    Teu poema nos faz refletir sobre o povo da ficção de Gulliver. Povo exibicionista. E nós? Somos o que nesta atual sociedade cibernética, onde até os humanos que estão na vitrine são fabricados nas clinicas de estéticas. Não seria um exibicionismo? 

    Apalausos e meu Destaque!

    • Cara Edith Lobato:

      Tem você pura razão! O exibicionismo (pleonasticamente espalhafatoso) é a tônica de nossos tempos. Mas se o ser humano não se submete a isso está visivelmente enrascado. Dificilmente há de prosperar, nesta sociedade. Vêm-nos à mente a atualidade das palavras do discurso de Rui Barbosa em 1914:

      "De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto."

      As nulidades triunfantes e o carreirismo dos dias do presente são mais numerosos que peixes na piracema, para usar uma imagem colorida, minha cara. E (desnecessário, a rigor,  explicitar) contra esse estado de coisas  se assentam os fundamentos deste meu poema, um bocadinho desconjuntado, é verdade.

      Abraço;

      j.a.

  • 10018648265?profile=RESIZE_584x

    • Cara  Angélica:

      Obrigado a você me sinto, mais uma vez, por seus constantes visitas e  encorajamento. Por vezes, da técnica do non finito,  seja decorrente de carência de traquejo, seja de "caso pensado", geram-se coisas vistosas. Espero que meu versejar, não raramente pouco protocolar, possa suscitar, no leitor, aqui e ali,  a curiosidade de um olhar mais circunstanciado, amigo. E, sob o prisma  literário, também vale o provérbio (como lá diz a feliz denominação do bloco carnavalesco carioca): "amizade é quase amor"...

      Abraço;

      j. a.

  • Qué maravilla!

    Bravo!

    Felicidades

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