Chovia muito em uma tarde de um dia qualquer nos dourados anos de uma infância saudável. O menino chega à sua casa todo encharcado, atira a mochila ao solo e, mais que depressa, se despe do uniforme escolar e o joga no tanque sem dó. Livra-se dos tênis junto com as meias sem ao menos desatar os laços dos cadarços e os arremessa a um canto qualquer. Antes de entrar ao banheiro, somente de cuecas, grita para a mãe providenciar uma toalha e roupas secas.
Enquanto se delicia com a água morna caindo sobre o seu tenro corpo, observa as espumas escoando vagarosamente pelo ralo do boxe e imagina qual seria a diversão de hoje, num dia chuvoso. De imediato lhe vem à mente a possibilidade de brincar com barquinhos de papel e soltá-los na enxurrada, antes de realizar a tarefa de casa.
De banho tomado e roupas limpas, arranca folhas do caderno e confecciona vários barquinhos, conforme lhe ensinara o vovô. Uma dobra aqui, outra ali, mais uma lá e está pronta a primeira embarcação. Minutos depois, com a frota em mãos e portando um guarda-chuva, os coloca um a um sobre a enxurrada que desce ladeira pelo meio-fio da calçada. Como um almirante senhor dos sete mares, observa com satisfação os barquinhos de papel navegando. Enquanto uns se enroscam nos detritos da canaleta, outros seguem adiante para nunca mais voltar.
Outro dia numa tarde qualquer de um verão escaldante daqueles mesmos anos dourados, o calor domina o ambiente e o menino de volta da escola cumpre a rotina. Para não se expor aos raios solares, bola mais uma brincadeira que aprendera com o avô. Folhas de sulfite se transformam em aviõezinhos. Uma dobra aqui, outra ali, mais uma e estão prontas as poderosas aeronaves. Da janela do seu quarto lança com maestria cada elemento da esquadrilha que sobe rumo ao céu de brigadeiro. Enquanto alguns alçam voos mais longos levados pela leve brisa e desaparecem por trás dos telhados da vizinhança, outros caem abruptamente sem obter o êxito de planar, muito menos de uma aterrisagem perfeita, frustrando o garoto.
Não passara tanto tempo desde a última brincadeira e uma vez mais a imaginação fértil do menino produz outra maneira de desfrutar do tempo. Com a folha de um jornal confecciona um chapéu de soldado guerreiro, tal qual aprendera com o vovô e de um simples cabo de vassoura faz surgir um garboso cavalo, no qual, todo prosa, cavalga em direção ao quintal cantarolando “marcha soldado cabeça de papel...”
Com todo o tempo a seu dispor, sempre encontra uma diversão para se ocupar. Desta vez outro brinquedo se faz necessário. E ele aproveita os fortes ventos de agosto, de um ano ainda dourado, manipula com precisão a cola, as varetas e o papel de seda que tem à disposição. Como num passe de mágica, faz surgir uma linda pipa colorida, conforme ensinara o vovô. Coloca o brinquedo no ar e, aos poucos, vai soltando a linha para o mais alto alcançar.
O menino cresce e dos primeiros passatempos de papel que aprendera com o seu avô, o agora adolescente já não tem tempo para manipular brincadeiras como outrora. Outras atividades distintas exigem mais seriedade, como escrever cartinhas. Não mais para o Papai Noel, mas bilhetinhos com singelas palavras para a encantadora menina, a mais linda da sala de aula que despertara o interesse e a descoberta do amor. Faltam-lhe palavras para colocar tantas emoções na folha pautada do caderno escolar. Isso o avô não o ensinou. O amor não surge com instruções. Simplesmente acontece sem nos avisar, por conta e risco de cada coração.
Agora adulto, com um livro em mãos, um trecho do texto o faz refletir. Pausa a leitura e viaja no passado, recordando as brincadeiras que o papel lhe proporcionou. Foram barcos, aviões, chapéus e tantas outras diversões. Neste momento é o livro companheiro que traz estampado no papel o poder mágico de viajar por épocas distantes e em locais que nunca imaginou, de conhecer personagens e histórias em profusão. Sábio foi o avô que um legado deixou e tantos brinquedos lhe ensinou a fazer, além do primeiro livro presenteado quando as primeiras letras aprendera, despertando-o para a leitura.
Você foi um menino de silêncios e livros. Nem poderia ter sido diferente. Um mundo inteiro amanhecia entre as paredes do seu quarto, depois da primeira página.
A capa levantada fazia anoitecer o que era realidade. À luz das palavras, tinha início sua andança por um sítio quântico de bonecas e bichos em plena prosopopeia. Além, no RJ de 1800, havia uma rua de armarinhos para mocinhas casadoiras que eram disputadas por mancebos de boa índole. Mais adiante, estava à beira dos verdes mares bravios com praias ensombradas de coqueiros. Agora era uma ilha no meio dos mares que ninguém cruzou, é..., e todos os dias se resumiam a Sexta-Feira.
Daí seguia para uma terra gretada onde aves de arribação ameaçavam securas de baleias e crianças. Mais acolhedor era aquele fundo de quintal, morada de um pé de laranja lima falante e sensível. Depois as redondilhas o levavam para longe e, volta e meia, o traziam de volta a sua terra que tinha mangueiras onde gritavam os pardais. E tudo ficava mais bonito.
Sem se aventurar nas calçadas de muita ação e dissonante vozerio mirim, você não sentiu falta da vida lá fora. Habituou-se a chamar para seu convívio amigos de palavras em vez de fisiologias. Continuaria assim ano após ano, até concluir, de uma vez por todas, que aquela gente feita de letras sempre estaria ao seu alcance: mão que se estenderia como ponte para inábil trapezista sem amparo de rede.
Mas nasceram os dias em que seus olhos perderam-se da sintaxe. Sua vida, à revelia. E era dentro de si o texto em convulsão. E sem conseguir andar por entre tantos descaminhos. E por duvidar de si desafiou a íntima Esfinge. E já sabendo que esse enredo era a história de quem estava só diante do Mistério, fechou os livros. E ficou realmente sozinho para achar seu rumo. E entendeu que somente sua palavra ordenaria seu caos. E, ao chegar sua hora, encarou o abismo branco à espera de frases. E você era só medo e vontade .
Bruno sempre gostou de pipas. Era um menino bem franzino, e sua única diversão era soltar suas pipas. Quando mais colorida melhor, e gritava alegre...
- Descarrega, que vou te enlaçar
- Vem pipa, você vai ser minha...
E ficava soltando a linha para ver se cortava a pipa que estava no alto
E cada pipa que cortava era uma história no livro da alegria e fantasia. O prazer não era só soltar, mas conquistar algumas, cortando-as.
E o tempo foi passando. Ele cresceu e hoje tem dois filhos. O maior gosta muito de pipas e o pai, de vez em quando, o leva no parque pertinho de casa para soltar pipas. E já leva bastante pipas, pois sabe que vai também perder muitas. Passam ambos um dia de grande aventura, enquanto a esposa brinca com o filho menorzinho.
No livro da vida vai ficando as histórias repletas de cores, ventos, e muita alegria.
De repente, as folhas do livro viraram grama e a figura do menino criou corpo, tomou forma. Ele que, por muito tempo, era apenas uma imagem ilustrada, agora podia correr pelo prado e empinar a pipa tão sonhada. Enquanto olhava sua pipa voar pelo infinito, deixou seu pensamento viajar pelas tantas perguntas que lhe ardiam na cabeça. Será que ele se tornara real através do sonho lúdico de alguma criança entre as muitas que, por milhares de vezes, folhearam o livro do qual ele era uma mera figura? E, daquele amaranhado de letras e palavras, qual delas seria o seu nome? Sabia que era um personagem do livro e não um leitor, por isso, não sabia o nome que o autor havia lhe dado. Como não sabia por quanto tempo ainda duraria a sonhada realidade de se transformar em gente resolveu se dar um nome. Escolheu chamar-se Artur. Depois de escolher seu nome optou por não se fazer mais perguntas e viver o direito de ser criança, livre tão livre quanto sua pipa que planava no céu ao sabor do vento.
O menino pegou em um pontinho no final da linha e amarrou em sua pipa serelepe com o vento.
E dibicando e soltando as linhas, ia desenrolando das folhas do livro palavra por palavra cada letra embaralhada, enquanto a pipa dançava livre pelo ar naquele luminoso céu de anil.
Quando já não tinha mais linhas escritas para desnovelar também voou segurando no fio daquela última letra. E acenando ao poeta disse em som quase sorriso:
__ Sou seu poema solto, seu sonho mais impreciso...
By Nina Costa, in 28/12/2019. Mimoso do Sul, Espírito Snto, Brasil.
Parabéns! Muito lirismo em seu texto, cara Nina; só temos que tomar cuidado para a linha (essa embira tipográfica) não embaralhar com as amarras daquelas aves selvagens que, alegadamente, o Pequeno Príncipe terá usado para se evadir...Abraço; j. a.
Respostas
BRINCADEIRAS DE PAPEL
Chovia muito em uma tarde de um dia qualquer nos dourados anos de
uma infância saudável. O menino chega à sua casa todo encharcado, atira a
mochila ao solo e, mais que depressa, se despe do uniforme escolar e o joga
no tanque sem dó. Livra-se dos tênis junto com as meias sem ao menos
desatar os laços dos cadarços e os arremessa a um canto qualquer. Antes de
entrar ao banheiro, somente de cuecas, grita para a mãe providenciar uma
toalha e roupas secas.
Enquanto se delicia com a água morna caindo sobre o seu tenro corpo,
observa as espumas escoando vagarosamente pelo ralo do boxe e imagina
qual seria a diversão de hoje, num dia chuvoso. De imediato lhe vem à mente a
possibilidade de brincar com barquinhos de papel e soltá-los na enxurrada,
antes de realizar a tarefa de casa.
De banho tomado e roupas limpas, arranca folhas do caderno e
confecciona vários barquinhos, conforme lhe ensinara o vovô. Uma dobra aqui,
outra ali, mais uma lá e está pronta a primeira embarcação. Minutos depois,
com a frota em mãos e portando um guarda-chuva, os coloca um a um sobre a
enxurrada que desce ladeira pelo meio-fio da calçada. Como um almirante
senhor dos sete mares, observa com satisfação os barquinhos de papel
navegando. Enquanto uns se enroscam nos detritos da canaleta, outros
seguem adiante para nunca mais voltar.
Outro dia numa tarde qualquer de um verão escaldante daqueles
mesmos anos dourados, o calor domina o ambiente e o menino de volta da
escola cumpre a rotina. Para não se expor aos raios solares, bola mais uma
brincadeira que aprendera com o avô. Folhas de sulfite se transformam em
aviõezinhos. Uma dobra aqui, outra ali, mais uma e estão prontas as poderosas
aeronaves. Da janela do seu quarto lança com maestria cada elemento da
esquadrilha que sobe rumo ao céu de brigadeiro. Enquanto alguns alçam voos
mais longos levados pela leve brisa e desaparecem por trás dos telhados da
vizinhança, outros caem abruptamente sem obter o êxito de planar, muito
menos de uma aterrisagem perfeita, frustrando o garoto.
Não passara tanto tempo desde a última brincadeira e uma vez mais a
imaginação fértil do menino produz outra maneira de desfrutar do tempo. Com
a folha de um jornal confecciona um chapéu de soldado guerreiro, tal qual
aprendera com o vovô e de um simples cabo de vassoura faz surgir um
garboso cavalo, no qual, todo prosa, cavalga em direção ao quintal
cantarolando “marcha soldado cabeça de papel...”
Com todo o tempo a seu dispor, sempre encontra uma diversão para se
ocupar. Desta vez outro brinquedo se faz necessário. E ele aproveita os fortes
ventos de agosto, de um ano ainda dourado, manipula com precisão a cola, as
varetas e o papel de seda que tem à disposição. Como num passe de mágica,
faz surgir uma linda pipa colorida, conforme ensinara o vovô. Coloca o
brinquedo no ar e, aos poucos, vai soltando a linha para o mais alto alcançar.
O menino cresce e dos primeiros passatempos de papel que aprendera
com o seu avô, o agora adolescente já não tem tempo para manipular
brincadeiras como outrora. Outras atividades distintas exigem mais seriedade,
como escrever cartinhas. Não mais para o Papai Noel, mas bilhetinhos com
singelas palavras para a encantadora menina, a mais linda da sala de aula que
despertara o interesse e a descoberta do amor. Faltam-lhe palavras para
colocar tantas emoções na folha pautada do caderno escolar. Isso o avô não o
ensinou. O amor não surge com instruções. Simplesmente acontece sem nos
avisar, por conta e risco de cada coração.
Agora adulto, com um livro em mãos, um trecho do texto o faz refletir.
Pausa a leitura e viaja no passado, recordando as brincadeiras que o papel lhe
proporcionou. Foram barcos, aviões, chapéus e tantas outras diversões. Neste
momento é o livro companheiro que traz estampado no papel o poder mágico
de viajar por épocas distantes e em locais que nunca imaginou, de conhecer
personagens e histórias em profusão. Sábio foi o avô que um legado deixou e
tantos brinquedos lhe ensinou a fazer, além do primeiro livro presenteado
quando as primeiras letras aprendera, despertando-o para a leitura.
SAMUEL DE LEONARDO - TUTE
IMPULSO
Você foi um menino de silêncios e livros. Nem poderia ter sido diferente. Um mundo inteiro amanhecia entre as paredes do seu quarto, depois da primeira página.
A capa levantada fazia anoitecer o que era realidade. À luz das palavras, tinha início sua andança por um sítio quântico de bonecas e bichos em plena prosopopeia. Além, no RJ de 1800, havia uma rua de armarinhos para mocinhas casadoiras que eram disputadas por mancebos de boa índole. Mais adiante, estava à beira dos verdes mares bravios com praias ensombradas de coqueiros. Agora era uma ilha no meio dos mares que ninguém cruzou, é..., e todos os dias se resumiam a Sexta-Feira.
Daí seguia para uma terra gretada onde aves de arribação ameaçavam securas de baleias e crianças. Mais acolhedor era aquele fundo de quintal, morada de um pé de laranja lima falante e sensível. Depois as redondilhas o levavam para longe e, volta e meia, o traziam de volta a sua terra que tinha mangueiras onde gritavam os pardais. E tudo ficava mais bonito.
Sem se aventurar nas calçadas de muita ação e dissonante vozerio mirim, você não sentiu falta da vida lá fora. Habituou-se a chamar para seu convívio amigos de palavras em vez de fisiologias. Continuaria assim ano após ano, até concluir, de uma vez por todas, que aquela gente feita de letras sempre estaria ao seu alcance: mão que se estenderia como ponte para inábil trapezista sem amparo de rede.
Mas nasceram os dias em que seus olhos perderam-se da sintaxe. Sua vida, à revelia. E era dentro de si o texto em convulsão. E sem conseguir andar por entre tantos descaminhos. E por duvidar de si desafiou a íntima Esfinge. E já sabendo que esse enredo era a história de quem estava só diante do Mistério, fechou os livros. E ficou realmente sozinho para achar seu rumo. E entendeu que somente sua palavra ordenaria seu caos. E, ao chegar sua hora, encarou o abismo branco à espera de frases. E você era só medo e vontade .
E por isso deu um passo à
f
r
e
n u
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e o
. o
Depois v
(E. Rofatto)
A pipa e a imaginação criativa...
Bruno sempre gostou de pipas. Era um menino bem franzino, e sua única diversão era soltar suas pipas. Quando mais colorida melhor, e gritava alegre...
- Descarrega, que vou te enlaçar
- Vem pipa, você vai ser minha...
E ficava soltando a linha para ver se cortava a pipa que estava no alto
E cada pipa que cortava era uma história no livro da alegria e fantasia. O prazer não era só soltar, mas conquistar algumas, cortando-as.
E o tempo foi passando. Ele cresceu e hoje tem dois filhos. O maior gosta muito de pipas e o pai, de vez em quando, o leva no parque pertinho de casa para soltar pipas. E já leva bastante pipas, pois sabe que vai também perder muitas. Passam ambos um dia de grande aventura, enquanto a esposa brinca com o filho menorzinho.
No livro da vida vai ficando as histórias repletas de cores, ventos, e muita alegria.
11/04/22
Norma Silveira
Criativa insíração na imagem proposta. Parabéns
A oficina de criação continua aberta para quantos desajarem compor e exercitar a criatividade.
Desafiem-se!
Artur
De repente, as folhas do livro viraram grama e a figura do menino criou corpo, tomou forma. Ele que, por muito tempo, era apenas uma imagem ilustrada, agora podia correr pelo prado e empinar a pipa tão sonhada.
Enquanto olhava sua pipa voar pelo infinito, deixou seu pensamento viajar pelas tantas perguntas que lhe ardiam na cabeça.
Será que ele se tornara real através do sonho lúdico de alguma criança entre as muitas que, por milhares de vezes, folhearam o livro do qual ele era uma mera figura?
E, daquele amaranhado de letras e palavras, qual delas seria o seu nome? Sabia que era um personagem do livro e não um leitor, por isso, não sabia o nome que o autor havia lhe dado. Como não sabia por quanto tempo ainda duraria a sonhada realidade de se transformar em gente resolveu se dar um nome. Escolheu chamar-se Artur. Depois de escolher seu nome optou por não se fazer mais perguntas e viver o direito de ser criança, livre tão livre quanto sua pipa que planava no céu ao sabor do vento.
Marsoalex – 09/01/2020
ARABEL
(Microconto)
O menino pegou em um pontinho no final da linha e amarrou em sua pipa serelepe com o vento.
E dibicando e soltando as linhas, ia desenrolando das folhas do livro palavra por palavra cada letra embaralhada, enquanto a pipa dançava livre pelo ar naquele luminoso céu de anil.
Quando já não tinha mais linhas escritas para desnovelar também voou segurando no fio daquela última letra. E acenando ao poeta disse em som quase sorriso:
__ Sou seu poema solto, seu sonho mais impreciso...
By Nina Costa, in 28/12/2019. Mimoso do Sul, Espírito Snto, Brasil.
Parabéns! Muito lirismo em seu texto, cara Nina; só temos que tomar cuidado para a linha (essa embira tipográfica) não embaralhar com as amarras daquelas aves selvagens que, alegadamente, o Pequeno Príncipe terá usado para se evadir...Abraço; j. a.
Nossa, o final do teu conto é embriagador!
Aplausos, Nina poetisa!
Minha amiga Edith, gratidão! Estava com saudades suas! Beijos!😘🌷🌷🌷